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História A Testemunha - Capítulo Quatro


Escrita por: cherrybombshell

Capítulo 4 - Capítulo Quatro


Canissa nunca teve que dormir sem dez corpos se apertando com força ao redor dela. Ela, como a irmã do meio quando se tratava de idade, normalmente também era a irmã no meio da cama. Era um amontoado de suor e cotovelos ossudos e chutes em sua maior parte não propositais, mas havia uma certa segurança naquilo tudo. Bene e Babet gostavam de a abraçar porque ela era a única que não os soltava durante a noite e apesar de reclamar e mentir e fingir, Canissa também gostava.

A cama de Veena era menor do que a cama que eles dividiam em casa, mas ia ser só para as duas, então isso fazia sentido.

O colchão não era tão fino, tão manchado, quanto o deles. Não era novo, mas isso também seria pedir demais. Era menos velho do que esperado. Mais grosso do que qualquer colchão no qual ela já tinha tocado, sendo que colchões em si já eram grande luxúria no lugar de onde ela vinha.

Sentada nele, com as mãos bem abertas e o sentindo embaixo das palmas, Canissa quase queria dar um pulinho para o testar. Deu uma balançandinha, uma leve inclinada de um lado para o outro, e só parou envergonhada quando Veena se virou para ela e levantou uma sobrancelha grossa e escura.

— Bom, né? Um outro menino que trabalhava aqui conseguiu com uma das nobre do castelo uns anos atrás. — Ela parou. Encontrou os olhos de Canissa com um brilho nos próprios olhos cinza escuros. — Ele era um pouco mais velho. Conseguiu um montão de coisas com ela.

Canissa não perguntou o que ele fez para conseguir um presente de uma nobre porque ela já sabia. Ela não perguntou o que aconteceu com ele, porque isso também não lhe era nenhum mistério algum. Ela não perguntou por que Canissa era diferente, por que Canissa tinha sido convidada para ficar com a outra menina, porque tinha medo de saber a resposta.

Ao invés disso, ela forçou um sorriso, forçou uma leveza na voz e nas palavras ao brincar:

— E mêmo assim cê pegô a cama dele?

Veena relaxou o corpo.

— Eu precisava mais — disse sem vergonha na voz rouca, sem culpa no rosto marcado. — Se ele quisesse mesmo o quarto, deveria ter brigando comigo tão bem quanto se aproximou daquela velha. E eu não sou toda ruim. Quando ele pedia eu deixava ele dormir no chão com a coberta e as minhas roupa embaixo da cabeça.

Canissa engoliu em seco.

— Generosa.

— Fui ensinada bem — disse Veena, sorrindo como se fosse uma piada interna, algo que ela instintivamente sabia que Canissa iria entender.

Algo prendeu na garganta de Canissa.

Não medo, e nem mesmo desgosto: respeito. Compreensão, daquele tipo que ela sentia nos ossos. Canissa tirou o cabelo da frente do rosto. A olhou, os olhos grandes e castanhos e a procura de algo mais.

— Agora cê vai me mostrá tudo direitinho também, né?

Veena estava certa de que iria. Era um estranho conceito, sinceramente.

Canissa nunca tinha precisado de muitas instruções antes de pegar o jeito de algo. Gente como ela não tinha o luxo de precisar ser ensinada com calma e seu único outro professor tinha sido o próprio império de Yafa, um educador impaciente, impiedoso e rápido para mudar as regras do jogo sem dar avisos prévios. A cortou até ela estar afiada pela crueldade de seu lar; quinze anos, transformada em nada além de uma criatura faminta. Desesperada. Por comida. Por muito além de comida.

Em comparação, o cuidado de Veena parecia quase que ter saído de uma das histórias sagradas deles.

A menina era atenta aos pés e à inexperiência de Canissa, delicada enquanto a guiava com uma mão firme nos ombros, amigável enquanto a dava instruções. Ela se movia ao redor dos animais com aquele mesmo andar com o qual Marya se movia pelos mercados de Quasha, os chamando por nome, apresentando para a outra menina, murmurando para eles e acariciando os pescoços.

O trabalho que elas tinham que fazer não era nada como ela, como aquele gingado relaxado. Era braçal, quente e principalmente fedido. Veena cheirava como os estábulos: cavalo molhado e merda de cavalo, e logo na primeira hora Canissa tinha começado a cheirar assim também, já enquanto era mostrada o lugar e cavalos e ensinada tudo que nobres esperavam delas.

— Olha que bom — foram as palavras de Veena, olhando por cima do ombro enquanto passavam por um garanhão branco que ela apontou como pertencente a consorte. — Nenhum deles parece ter medo de você. Isso sim seria um problemão.

Braçal, quente e fedido; Canissa sorriu para Veena, dessa vez um sorriso sincero e cheio de dentes, e soube que ia se dar muito bem com um trabalho assim.

Mãos ocupadas, ela pensou, mente vazia.

Assim que era bom.

Os estábulos eram gigantes. Tinham cinco longos corredores, o chão inclinado "para drenagem" de acordo com Veena, divididos em várias confortáveis cocheiras para os cavalos, e com um grande aberto pátio onde os guardas uma vez no mês treinavam e, bem mais importante, por onde os nobres entravam quando queriam cavalgar, o ar lá mais fresco e o chão mais limpo.

Os animais em si eram tanto para a recreação dos nobres quanto para a caça dos guardas. Veena disse que eles costumavam criar cavalos para guerra na época do pai dela, mas que a maioria já tinha sido mandada para as fronteiras e hoje em dia eles estavam sendo procriados junto ao exército mesmo, junto aos elefantes e panteras de guerra deles.

Mais de duzentos eram mantidos lá, teriam que ser cuidados pelas duas, mas a quantidade de cocheiras vazias e acumulando poeira deixava claro que no mínimo o dobro daquele número costumava existir e ser mandado para batalhas.

— A minha salvação é que eles não ficam mais aqui e que, com os que ficam, a maioria dos guardas gosta de cuidar do próprio cavalo — explicou Veena. — Os guardas do Divino mesmo são mó chatos sobre isso, eles querem que a gente cuide dos deles tão bem quanto cuidemos dos da realeza, mas o resto é mais de boa. Única coisa que torna esse trabalho possível só comigo e agora com cê também. O problema é que cê tem que cuidar dos cavalos dos nobres como se eles fossem nobreza mesmo.

— Eles come melhó que eu — comentou Canissa, interrompendo Veena a falando tudo que elas teriam que fazer por ele. Estava genuinamente chocada.

Três pães inteiros! Tantos grãos e aveia e feno! Água, límpida e que nunca acabava! Tudo para um só animal!

Quando a outra menina soltou uma risada sincera e com gosto, Canissa até sentiu como se estivesse em casa, com um dos amigos de rua e tão segura quanto sempre esteve. Ela tocou em dos outros cavalos, menor, orgulhosa até sentir que ele, tão mais bem cuidado do que o da mãe dela, tinha tantas pequenas cicatrizes pelo corpo, uma lembrança clara dos chicotes de ouro que Veena também já tinha a mostrado.

Ela estremeceu, voltando a ouvir Veena.

A menina usou o próprio garanhão branco da consorte como exemplo, porque ela disse que de todos os cavalos, ele era o único que nunca tinha sido usado nem uma única vez desde que Veena começou a trabalhar ali, mesmo sendo o segundo maior e segundo mais bem cuidado.

Canissa achava que a consorte devia ser bem estúpida.

O garanhão era elegante, amigável, surpreendentemente brando. Subir nele foi fácil, andar nele calmante, Veena vendo se ela conseguia o guiar e montar sem problemas. Porque alguém o teria só para o deixar de lado esquecido, Canissa não entendia.

Não que fosse lugar dela entender seus superiores.

Manter os estábulos limpos. Alimentar e exercitar cada um dos cavalos, e manter os cavalos dos nobres com uma aparência tratada e enfeitada e perfeita. Os selar e preparar sempre que alguém descesse querendo subir neles. Sim, isso era o que Canissa devia, podia fazer, até se tivesse que empurrar seu corpo além do ponto de completa exaustão.

Mas era como Veena tinha dito. Essa não seria a parte mais importante. Seria os nobres mesmo. A política daquela corte, que envolvia até alguém tão pequeno quanto ela.

Elas comeram pão seco e queijo fresco sentadas no feno e depois, quando o sol se punha vermelho, Veena a puxou para fora dos estábulos.

A brisa passou por elas, pesada enquanto Veena caminhava descalça pelas pedras claras e uniformes. Os criados que passavam por elas estavam quase todos descalços, carregando coisas nos braços, apresentando cicatrizes e partes do corpo faltando que Canissa não podia deixar de encarar. Eles iam, apressados, na direção do castelo, enquanto as duas seguiam o caminho oposto.

Um caminho que levava até vários templos.

Não era uma surpresa. Era esperado que cada cidadão de Yafa dissesse suas preces, não importa quão pequenas, no mínimo três vezes no dia e fizessem uma mais longa oferenda uma vez a cada três dias. Que os maiores Deuses deles tivessem seus templos no castelo, e Deuses menores como a de Canissa não tivessem, era o que era esperado e correto.

Na capital, os Deuses maiores também tinham todo um bairro só com Seus gigantes templos, enquanto os santuários menores dos Outros podiam ser encontrados espalhados pela cidade, enfiados em meio a becos escuros, entre vielas sujas, no centro de mercados suspeitos, usados como pontos de referências para acordos ainda mais ilícitos.

Ela só não entendia porque Veena começou a levá-la até um lugar específico.

— Eu não rezo pro Tau — argumentou Canissa.

O Dele era o templo maior e mais cheio de criados e guardas, o caminho de pedras até ele cercado por fileiras de lobos cravados em mármore, as grandes bocas abertas, os dentes afiados, esmeraldas nos olhos. O mármore do templo era cravado com imagens, palavras, ouro puro para todos os lados. O castelo todo decorado com mais dourado do que Canissa jamais tinha sonhado em ver. A deixava enjoada.

Veena cruzou os braços delas, empurrando caminho para dentro.

— O Divino é um devoto do Tau — sussurrou. — Ele participa de outros festivais e cerimônias para manter os outros Deuses calmos, além dos outros nobres que não iam gostar dos próprios Deuses sendo deixados de lado, mas todo mundo sabe que ele só se importa de verdade com Tau. Falou pra todo mundo no castelo rezar pra Ele. — Veena apontou para a estátua no centro de tudo. — Ordens em nome da Ordem Divina. Só ora para tirar os guardas do seu pé e a gente pode ir.

Canissa se ajoelhou para rezar com raiva, indignada que o Divino aparentemente podia decidir até qual Deus eles tinham que favorecer acima dos Outros. Claro que ele teria escolhido Tau, com a história Dele com a família do homem e o que os sacerdotes Dele falavam além disso: Ordem acima de todos, Ordem sempre, Ordem em todo lugar, centenas de braços erguidos que jogavam Suas sombras e fechavam Seus apertos por cima de todo o império e mundo.

Foi com uma teimosia indignada que ela fechou os olhos, pendeu a cabeça para frente e rezou pela própria Deusa em frente à estátua de Tau.

Sabia que devia ser algum tipo de heresia, algum crime no papel apesar de na prática não ter como ninguém saber o que ela pensava, mas ela achava que pelo menos a Deusa dela não ia se importar. Esperava que não. Como poderia uma Deusa da trapaça e das sombras se importar com algo assim?

Se Ela pudesse, Canissa tinha desperdiçado muitos anos com aquele seu ponto fraco.

As palavras se prenderam à língua dela como a areia sempre presente no ar, grudentas e ásperas enquanto ela tentava as engolir. Não tinha nenhuma prece. Nenhuma que fosse ser genuína. Nenhuma que ela achava que ia ser ouvida.

Só pensou na Deusa. Pensou no dia que teve e na menina ao seu lado e pensou eu não posso morrer.

Foi uma das primeiras a se levantar, esperando por Veena e esperando sair do templo e estar longe dos guardas para poder tocar os olhos e a testa, lançar um beijo para o céu sangrante.

Os joelhos dela doíam, só que isso nem dava para ser notado em comparação a dor nos pés dela. Aquela noite, Canissa caiu no sono fácil apesar de tudo, mas só porque os roncos de Veena a lembravam dos de Marya, e porque o abraço dela era tão caloroso quanto o de Babet.

 

**

 

Era impossível para Canissa dizer se trabalhar no castelo era pior ou melhor do que os rumores que ela ouviu nas ruas davam a entender. Dependendo do dia ela podia ter duas respostas completamente diferentes e igualmente resolutas – e isso dependia, inteiramente, se ela teve que interagir com nobres ou não naquele específico dia.

Veena sempre deixava claro que elas eram sortudas.

— A gente passa o dia inteiro nos estábulos — ela apontou para Canissa. — Nobres não gostam de cheirar ou pensar em merda de cavalo, então a gente não vai ver eles tanto assim e, quando ver, eles só querem vir e sair rápido. São os criados lá dentro que tem que lidar com eles de verdade. São eles que levam mesmo as surras. Eu sei bem, lembro da diferença entre o pai e a mãe. Só semana passada ouvi que uma criada foi açoitada até o rosto estar irreconhecível só porque derrubou o jantar da consorte. Olha que a consorte é uma puta glorificada e tá longe de ser a pior da corte.

— O pior castigo que eu já vi alguém nos estábulo receber foi quando o marido daquela nobre descobriu que o menino tava na cama com a esposa dele — ela continuou. — Aí sim ele veio aqui e fez o cara comer merda. Mas tirando isso? Difícil eles quererem perder tempo.

Os cavalos ainda comiam melhor do que ela, mas Canissa pelo menos comia. Pão e queijo e de vez em quando feijão com uma frequência que ela nunca antes teve – um poder de olhar para o dia seguinte e saber que uma refeição iria vir.

Para isso Veena também tinha comentário.

— Nobres podem barrar refeições como castigos. Fazem isso muito lá dentro, mas aqui é bem raro.

Ali jazia o problema: trabalhar no castelo, para ela, não era problema algum.

Era um trabalho duro, mas Canissa gostava de trabalhar duro. Era bom, ainda mais com um estômago que não estava constantemente apertado de fome e pés que já iam sarando, se esforçar daquele jeito, até ter uma ardência nos músculos e um entorpecer nos pensamentos. Por dinheiro ela podia sangrar. Era uma das primeiras coisas que a mãe ensinou.

Os nobres que eram a pior e mais importante parte.

Nos primeiros três dias, sempre que algum apareceu, Veena mandou Canissa só olhar. As três noites, Veena tinha passado tentando ajudar Canissa com sua pronuncia e gramática e seus modos, que aparentemente também seriam considerados bastante desrespeitosos.

As duas ficavam sentadas naquela pequena cama, as velas crepitando como lareiras ao redor do quarto, emanando um cheiro de lavanda que pouco servia para esconder os cheiros do lugar. Veena sussurrava, paciente e divertida em meio a escuridão interrompida, e Canissa repetia tão bem quanto podia, dezenas de frases que era esperado que ela falasse sem soar como a menina que era. Demonstrações de protocolo e educação, subserviência apresentada descarada como eles gostavam.

Só na quarta tarde ela deixou Canissa se aproximar de uma nobre. Mesmo assim se manteve por perto, braços cruzados e olhos atentos.

A mulher era da idade de Babet. Tinha um rosto suave, um cheiro de incenso de lavanda e sálvía impregnado nas roupas e no corpo, tantos adereços lhe cobrindo dos pés à cabeça que Canissa mal podia os contar: anéis, colares, braceletes, tornozeleiras, tudo de ouro, tudo um desperdício. Tinha uma grande e pesada argola no nariz, conectada a outra verde joia no ouvido através de um fio dourado. Ela achava que isso era popular lá pro oeste. Eles não tinham o costume de se furar, mas sabia que vinha ficando mais comum por causa da consorte.

Ela também achava que não era uma boa ideia cavalgar tão arrumada assim, mas ninguém tinha a perguntado o que achava, né não?

Canissa entregou o cavalo para a mulher perfeito. Sabia que estava, porque ela tinha o preparado direitinho e porque Veena tinha concordado que ele estava pronto. Entregou as rédeas bem na mão da nobre com um sorriso pequeno e educado.

— Tá aqui, senhora.

E ela nem soltou o animal direito antes de receber um tapa na cara.

Canissa foi atingida uma litania de indignados "que desrespeito!" e "você sabe quem está na sua frente, garota?!" e um montão de outras coisas que ela nem conseguiu raciocinar enquanto o ouvido apitava e a bochecha esquentava. Tinha sido um tapão. Tinha doído.

Foi um choque. Era estúpido da sua parte o quão chocante foi para ela.

Canissa estava acostumada com violência, mas nenhum nobre nunca tinha batido nela. Guardas sim e muitas vezes. Outros pobres, claro que também. Quando se estava preso na sujeira, não havia nada o que fazer a não ser lutar pela merda. Nunca ela tinha sido machucada por alguém com as mãos limpas e suaves – nunca um dos ricos vendedores tinha ousado se sujar a tocando, mesmo que de uma maneira dolorosa, e levar um tapa de alguém com as mãos cheias de anéis era diferente.

Para alguém que parecia tão "enojadinho", a mulher bem que era forte.

Ou talvez só fosse maior e mais velha do que Canissa mesmo.

— Você quase foi bem, docinho — Veena a falou depois que a nobre saiu para andar de cavalo como se nada tivesse acontecido. Os olhos dela eram bondosos enquanto apertava o ombro de Canissa. — Mantém os olhos no chão, da próxima vez. Eles não gosta quando a gente olha eles nos olhos.

— Por quê não? — soltou indignada, tocando a própria bochecha.

— Porque aí faz parecer que a gente acha que é gente igual eles, né? — Veena cutucou a bochecha não machucada de Canissa, sorrindo. — Claro que eles não podem deixar a gente achar isso. — Canissa bufou. Ela riu. — Cê vai aprender. Não se preocupa.

A menina parecia ter certeza de que Canissa iria.

Ela só conseguia se lembrar da conversa que teve com a irmã aquele dia no mercado sobre o vendedor pryshe. Ele ia aprender, porque não tinha outra escolha. Ela estava na mesma posição agora e, assim como ele ia ser furtado várias vezes enquanto se acostumava àquele novo império e novo povo e as regras que com eles vinham, ela ia receber vários tapas enquanto tentava entender como é que aqueles nobres funcionavam.

Manter os olhos no chão era uma lição importante. Não falar mais do que necessário, nunca se esquecer de os chamar de senhor e senhora quanto tivesse que falar. Não se esquecer dos erres no fim dos verbos e de colocar as palavras no plural. Parecer grata pela oportunidade de os servir, mas não parecer tão grata que aí parecia estar zombando deles. Limpa o suficiente para eles não ficarem enojados, mas não tão limpa que eles poderiam comprar briga dizendo que ela não estava trabalhando tanto quanto deveria. Quieta, mas não tão quieta que os faria brigar por estar os ignorando.

Uma porrada de coisas, todas que se juntavam para formar uma única regra clara: ela não podia nem por um segundo se esquecer do seu lugar.

Não podia se esquecer que o seu lugar era abaixo deles.

Veena não mentiu quando disse que os nobres não perdiam tempo as dando castigos criativos. Só esqueceu de mencionar que eles não hesitavam em as dar castigos rápidos e previsíveis; um tapa aqui, um soco ali, um puxão no cabelo e tacada no chão que fazia os puxões da mãe de Canissa parecerem abraços. Ela se acostumou a ficar com a bochecha inchada e o lábio sangrando, a sentir uma certeza de que iria comer todos os dias e certeza de que iria ser castigada tão frequentemente quanto, mas...

Mas ela ainda estava viva. Ainda tinha todas as partes do seu corpo e não tinha visto ninguém ser morto ainda. Não ouviu sobre nenhuma morte. Só isso já era mais do que Canissa esperava depois de todos os boatos.

No final da primeira semana, quando recebeu um primeiro pagamento, ela só conseguiu encarar as moedas, sentindo... sentindo algo. Lá no estômago dela. Mexendo. Se apertando. Uma cobra, tensa e sibilante, assustada, vibrando e rastejando e preparando para atacar.

Ela não era capaz de nomear o que é que aquilo era.

O que queria, quando Canissa se viu com lágrimas nos olhos e uma risada na boca tudo ao mesmo tempo.

Não fazia sentido, porque se os criados eram pagos, e se Veena a disse que a maioria deles enviava seus pagamentos toda semana e a própria Veena era uma das únicas que guardava o que ganhava porque não tinha família, então como que nenhum dinheiro era recebido pelo povo na cidade?

Como ela podia conciliar a realidade da situação com tudo que tinha ouvido?

 

**

 

O Divino e a consorte voltaram do Titiyhebati depois de duas semanas, o que Canissa só soube porque na mesma tarde em que o Divino chegou ele quis andar a cavalo. Veena a mandou entrar no quarto. A mandou não sair e não fazer nenhum barulho.

Não que isso tivesse impedido Canissa de ir os espiar.

Ela nunca tinha o visto antes. Não de verdade. Ele era diferente da estátua que ela tantas vezes se viu encarando; mais velho e menos bonito. Não que ele fosse feio, seria impossível que ele fosse com cada expectativa de beleza e elegância do império tendo nascido por causa do rosto dos imperadores passados, antecedentes do homem. Só estava claro que o artista que o imortalizou em pedra também deu uma exagerada nas feições dele e uma escondidinha nas marcações de idade.

Ele era tão intimidante quanto as réplicas dele. O homem mais assustador que Canissa já tinha visto e ela nem conseguiu explicar porque se sentia assim. Ele só era.

Tinha subido no cavalo, puxando as rédeas para cima, quando olhou por cima do ombro e encontrou com os olhos de Canissa. Eles eram castanhos. Castanhos e escuros e profundos, os cantos se enrugando todos quando os cantos dos lábios se levantaram em um pequeno, suave sorriso na direção da menininha escondida no cantinho.

O chicote no cinto dele reluzia contra o sol.

Canissa não hesitou nem por um segundo antes de, em rápida sucessão, se encolher, soltar um arquejo e desaparecer para longe do pátio. Foi tão instintivo que ela nem entendeu o que aconteceu até já estar longe, o coração batendo forte no peito.

O Divino a viu.

O Divino sorriu para ela.

— O Divino vem aqui uma vez a cada quinze dias — Veena a contou depois. — Tenta vir, pelo menos. Os homens dele dão um aviso de pelo menos uma meia hora, então quando isso acontecer, cê vaza e me deixa lidar com ele sozinha. Cê pode ficar aqui por mais um ano inteira e eu não acho que cê já estaria pronta para ele.

Ela tinha encarado toda a interação dos dois. O Divino não tinha feito nenhuma grande demanda. Não tinha batido em Veena ou sequer gritado. Era a pessoa mais poderosa em todo o império, mas agiu com mais calma e simplicidade do que qualquer outro pequeno nobre.

Quando falava dele, o rosto de Veena se enchia de medo. Até na vez que um nobre tinha levantado um chicote contra ela Veena não tinha ficado assim. Tinha encontrado a dor com prontidão e teimosia, na hora, e fugido do Divino com as mãos tremendo e a cabeça abaixada até horas depois dele já ter ido embora.

Essa era a parte que mais assombrava Canissa.

Infelizmente, o que Veena queria (manter Canissa longe, bem longe) não foi o que aconteceu.

O sol coloria o céu escuro como uma fruta madura e suculenta manchando um pano de lã que com delicadeza a envolvia. Elas acordavam cedo toda manhã, para recolher forragem para os animais. Veena trabalhava em silêncio a não ser por quando estava sussurrando e acalmando os cavalos. De vez em quando ela parecia se esquecer que tinha outra menina nos estábulos, acostumada como estava à trabalhar sozinha – e então ela iria olhar por cima do ombro, e fazer algum comentário sorrindo torto, ou soltar uma risada rouca e baixa por causa de algum comentário de Canissa, e Canissa iria pensar que o castelo nem era tão ruim assim.

— Eles que faz ter que lidar com aquele povo valer a pena — ela comentava de vez em quando, sem olhar Canissa nos olhos. — Bem melhores que humanos, esses meus cavalos.

Canissa olhava para o rosto dela e concordava devagar. Meus. Engraçado isso.

Foi na quarta semana de Canissa ali, naquelas primeiras horas ainda não claras do dia, que um grupo de guardas entrou nos estábulos.

Eles estavam rindo, algo alto e repentino quebrando a calmaria em que as duas se encontravam antes. Eram jovens, o bom humor e diversão claros nos rostos, a não ser por um que andava um pouco mais atrás. Canissa o reconheceu na hora, o guarda silencioso e cruel da jornada até o castelo. Os outros não eram os mesmos, mas ele era.

Quando ele passou por ela, os olhos tinham o mesmo brilho de antes. Mesma malícia.

Quando ele passou por Veena, os olhos da outra menina se cerraram. Havia reconhecimento na expressão dela. Eles também se conheciam e também não gostavam um do outro. Tinham mais história do que Canissa.

Os guardas levaram os cavalos até o pátio. Barulhentos e brincalhões, ela queria os evitar tanto quanto queria evitar o Divino e foi por isso que, assim que pôde, foi trabalhar mais para o fundo nos estábulos.

Quando ela saiu meia hora depois, limpando estrumo das mãos com um pano, Veena e o guarda silencioso estavam discutindo.

Bem, Veena discutia, o rosto retorcido com fúria, praticamente cuspindo na cara dele. O guarda só estava a segurando. Estava apertando o braço dela com uma força, em um ângulo, que Canissa tinha quase certeza que iria torcer o osso da menina, a mão dele grande e grossa ao ponto de parecer monstruosa em comparação ao pulso fino dela.

— Ei! — exclamou Canissa, correndo.

Ela aceitava desaforo de nobres porque não queria morrer. Gente como ele só podia a machucar, então ela não hesitou em o empurrar para longe de Veena.

— Vem, Anwar — um dos outros guardas chamou, parecendo do mais irritado do que preocupado. — Deixa a pirralha, cê vai assustar os cavalos.

— Vai se foder — soltou Veena, puxando Canissa para longe. Estava olhando por cima do ombro sem parar, os olhos arregalados, um pouco marejados. — Merda. — Ela apertou o pulso contra o peito. — Merda. Zasnet'ra.

Ela se virou para trás, soltando um cuspe grande e catarrento no chão em direção a onde eles estavam – um gesto de livramento e limpeza para devotos de Kaur, apesar de Canissa não saber se era esse o caso ou só raiva mesmo.

Ela tocou no braço bom de Veena, começando a guiá-la em direção ao quarto.

— Quê isso? Conhece ele como?

Veena a olhou. Franziu os lábios.

— Do pior jeito possível — disse amargamente. — Ele é meu irmão. — Canissa congelou, parando de andar. Veena nem prestou atenção nela, o rosto retorcendo de novo. — Da. Com certeza tá torcido.

Canissa já tinha sangrado por causa dos irmãos. Já tinha se aproximado de Babet por causa de ossos quebrados e dentes quase perdidos, sangue que eles dividiam pingando em seus pés. A violência carinhosa entre familiares era, para ela, uma prova de amor. Não era o que ela viu no rosto de Veena e do aparente irmão. No rosto deles só havia ódio. Isso ela não podia, não queria entender.

Em que tipo de lugar eles estavam, que irmãos se olhavam assim?

— Cê é bem mais bonita que ele — Canissa se viu dizendo depois. Estava ajudando Veena a enfaixar o pulso, que tinha adotado uma coloração roxa e dado uma inchada, tentando achar algum jeito de melhorar o clima.

Veena balançou a cabeça, rindo.

— Ele parece mais com a mãe — concordou. — A coitadinha não era uma mulher sortuda.

Ela continuou trabalhando nos dias seguintes, mas Canissa a convenceu a pelo menos deixar que Canissa cuidasse dos nobres. Se alguém fosse se sentir ofendido por um trabalhador ousar estar machucado na sua frente ia ser o povo daquela corte, e do jeito que eles eram, eles eram acabar transformando o pulso torcido dela em um braço quebrado.

Quando o homens do Divino apareceram para avisar que ele ia vir, ela era a única nos estábulos. Veena estava no castelo pegando mais suprimentos.

Resolver não correr para a chamar e nem mesmo esperar por ela foi uma decisão bem mais difícil do que decidir dividir sua comida com os irmãos. A auto-preservação dela brigava a cada passo, mas enquanto se lembrava do olhar de dor e pânico de Veena nas mãos do irmão, ela soube que não podia ir atrapalhar o descanso relutante da outra.

Canissa só tentou se acalmar lembrando de que, nas duas visitas anteriores, ele tinha indo embora sem nem olhar no rosto de Veena. Essa ia ser rápida também.

Mas quando ela entrou no pátio e ela o entregou o maior garanhão que eles tinham, o preto, o mais cheio de cicatrizes, o Divino não o montou.

Ao invés disso, ele segurou as rédeas. Ele olhou para baixo. Canissa sentiu os olhos dele descendo pelo corpo dela lentamente, intensamente, apesar dela manter os olhos no chão obedientemente e as mãos atrás das costas, mordiscando o lado de dentro da boca. A respiração dela deu uma falhada. Ganhou peso.

— Você é nova.

Canissa congelou, chocada e aterrorizada, quando a mão do Divino se encontrou com a bochecha dela, manuseando o rosto de Canissa como se ela fosse uma linda, delicada bonequinha de porcelana que ele queria inspecionar antes de comprar.

Ele inclinou o queixo dela para cima. O toque era delicado, tão delicado que fazia a menina sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo parecia mais pesado do que qualquer toque tinha o direito de ser. Não foi embora rápido.

O dedão dele traçou o maxilar dela, sentindo cada restinho de suavidade infantil que Canissa ainda tinha, até ele parar com o dedo em cima dos lábios dela. Os anéis dele eram frios, metal pressionado contra a carne da bochecha dela enquanto o dedo dava uma leve batida na boca dela.

Canissa não pôde fazer nada a não ser ficar parada; sentindo verdadeira e fisicamente como se seus intestinos tivessem se transformado em gelo. Mal ousava respirar, com medo de que o ar lhe deixando o nariz fosse tocar na mão enrugada do homem e o fazer de alguma maneira reagir.

— Que interessante — o Divino disse, pensador, e o pavor de Canissa ficou maior, mais frio.

Ela se manteve calada e sem mexer e tão encolhida quanto possível até o Divino dar um passo para trás e subir no cavalo, cavalgando para longe com um último olhar por cima do ombro, sorrindo todo reluzente para ela.

Ao conhecer o Divino, Canissa não foi de imediato mandada para as celas de tortura do castelo como alguns criados antes dela tinham sido – ao invés disso, ela acabou com um destino muito pior e mais perigoso.

Canissa chamou a atenção do Divino.



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