Somebody told me that there's two sides to this life (Algúem me disse uma vez que nesta vida existem dois lados)
I think I might have chosen darkness over light (Eu acho que escolhi a escuridão ao invés da luz)
[...]
I'm kinda helpless and I need you (Estou meio desamparado e preciso de você)
Sing to me, 'cause I'm not doing well (Cante para mim, porque não estou bem)
Sing to me - MISSIO
Nos três dias seguintes após encontrarem a planta que poderia salvar Ao'nung, Neteyam se dedicou totalmente ao seu amado. Constantemente limpava suas feridas e o sangue que poderia vir a aparecer outra vez. Desfez suas tranças com cuidado, ajeitando os fios para que ele ficasse confortável. Molhou seus lábios para que não passasse sede. Removeu os acessórios do pescoço e braços e, por fim, pegou uns pedaços de tecido que haviam trazido para dormirem e forrou um canto onde a grama era informe para deitar o herdeiro, que seguia em sono profundo. Aquele ritual de cuidado se tornou uma necessidade para ele.
Aproveitou também para conseguir recursos na floresta, coletando folhas enormes, raízes, madeira, dentre outros itens para construir uma espécie de cobertura no centro da clareira, protegendo-os de chuvas. Arrumou todas as bagagens que havia bagunçado, encheu as tigelas vazias de ervas medicinais com mais flores amarelas e voltou até o canal para pegar tudo o que havia deixado para trás antes. Apesar de boa parte da antiga base ter sido destruída, ainda haveria muito o que ser feito para desobstruir o canal completamente. Mas, Neteyam não se importou com isso. Não era hora.
Com o acampamento parecendo mais uma casa, ele pôde descansar um pouco também. Ou tentar. A verdade é que Neteyam mantinha sua mente ocupada durante todo o dia, procurando qualquer coisa que pudesse fazer. Mas a noite, quando o frio chegava e ele precisava dormir, não podia escapar dos pensamentos assombrosos que o atormentavam.
Suspirou, sabendo que não dormiria outra vez.
Já era noite e Neteyam estava deitado de costas para Ao'nung, fitando a fogueira com um semblante cansado. À sua esquerda estava a rede onde Tai'Ren jazia tão escolhido ao ponto de não dar pra vê-lo direito. Apesar de terem se ajudado quando precisaram pegar as flores medicinais, o garoto seguia muito introspectivo, passando a maior parte do tempo sentado ao lado de Ao'nung ou no penhasco. Raramente trocavam palavras.
Virando-se para ver Ao'nung, que seguia dormindo, deixou seus dedos tocarem suavemente o rosto dele e depois deslizarem para o cabelo encaracolado, sentindo a textura que sempre achou tão linda. Incomodado com o silêncio e tentando acalmar a si mesmo, Neteyam cantarolou a única música que era capaz de lhe acalmar totalmente.
A música que sua mãe cantava para ele e Kiri desde que eram bebês era como um acalento para todos os seus momentos de ansiedade. Desde sua união, cantou-a algumas vezes para Ao'nung. E mesmo que Neteyam não considerasse sua voz grande coisa, era sempre elogiado por seu companheiro.
— Você fica lindo quando está cantando em paz. – Disse Ao'nung, em um desses momentos. – Eu poderia ficar aqui por muito tempo. Fico em paz também.
Atingido momentaneamente pela tristeza, Neteyam continuou cantando, rezando para que seja lá onde a consciência de Ao'nung estivesse, pudesse de alguma forma alcançá-la.
— Ngaru irayo seiyi ayoe (Nós somos gratos), tonìri tìreyä (Pelas noites de vida)...
Tai'Ren, que estava quieto porém sem conseguir dormir, escutou a voz baixinha de Neteyam e suas orelhas se animaram, curiosas, mas ele não se moveu.
— Ngaru irayo seiyi ayoe (Nós somos gratos), srrìri tìreyä (Pelos dias de vida)... Ma Eywa, Ma Eywa...
Distraído na canção e cada vez mais cansado, Neteyam continuou a fazer carinho nos cabelos de Ao'nung, perguntando-se se algum dia teria a oportunidade de, assim como sua mãe, criar uma canção para seus filhos.
***
Neteyam acordou ouvindo grunhidos de esforço vindo de Tai'Ren. Seus olhos se adaptaram rápido à realidade, pegando o arco instintivamente e virando-se em direção ao garoto.
— Mas o que...- Sussurrou, ainda sonolento.
Seu rosto se franziu ao ver Tai'Ren tentando caminhar segurando a lança de Ao'nung e falhando miseravelmente. A arma era muitas vezes maior do que ele, o que o fazia usar os dois bracinhos para carrega-la, mas não aguentava por muito tempo.
— O que está fazendo? – Disse Neteyam, se levantando devagar. Olhou rapidamente para Ao'nung apenas para se certificar de que seu peito continuava se movendo conforme respirava.
Ignorando sua pergunta, Tai'Ren tentou outra vez erguer a lança, soltando um som sôfrego pela força. De novo, falhou. Desistindo de carrega-la, ele fechou ambas as mãos na parte sem ponta e começou a arrastar a arma pela grama, saindo da clareira e sumindo na floresta.
Neteyam fechou os olhos por alguns segundos, refletindo se deveria simplesmente deixar o garoto andar por aí com a lança ou se deveria impedi-lo. De imediato pensou em deixar ele fazer o que quisesse, mas ao virar e ver Ao'nung, seu coração pesou um pouco, pois sabia que ele não gostaria nada daquilo.
Resolvendo seu dilema tão rápido quanto começou, Neteyam pegou suas flechas e seguiu atrás de Tai'Ren, apressando o passo para alcançá-lo.
— Tai'Ren! – Chamou. – O que está planejando fazer com isso?
Contudo, o menino definitivamente não estava disposto a conversar com ele e mais uma vez se manteve em silêncio, focado apenas em puxar a lança, as vezes tropeçando quando ela enganchava em algo. Neteyam agora caminhava, apenas desviando os pés dos insetos e observando o tamanho do esforço do menino na sua misteriosa tarefa.
— Tai'Ren. – Tentou outra vez. – Estou falando com você.
Em resposta, Neteyam recebeu apenas uma feição emburrada, de lábios franzidos e bochechas infladas.
Bufou, sonolento demais para se estressar de verdade com aquilo.
— Vamos, me dá isso. – Neteyam se abaixou na intenção de pegar a lança, mas o menino acelerou o passo, escapando. – Tai'Ren! Volta aqui!
Ofegante, Tai'Ren correu puxando a lança até o seu objetivo. O coração disparava no peito ouvindo a aproximação de Neteyam.
— Por que você está agindo assim? – O Omatikaya questionou, com sinceridade. – Com o Ao'nung você não parava de falar. Agora não sabe mais como faz isso?
— Eu falo com o Nung porque ele é bonzinho! Você é mau! – Retrucou Tai'Ren, finalmente quebrando o silêncio.
— Eu não sou mau!
— É sim!
Cansado daquela conversa sem sentido, Neteyam decidiu correr e quando conseguiu segurar na lança, percebeu que estava diante de uma linda lagoa cercada de rochas. Tai'Ren puxou a lança, tentando libertá-la.
— Solta! – A voz infantil gritou.
— Você não pode usar isso. – Neteyam mal usava força para manter a lança presa em sua mão. – Agora me dá aq...
O garoto rosnou pra ele, em uma postura defensiva e mostrando as presas, puxando com toda sua força.
— O que está fazendo? Guarda essas suas presinhas de filhote. – Resmungou o Sully, incrédulo. – Você não tem idade e nem tamanho pra agir com rebeldia. Está parecendo meu irmão quando criança!
— Solta! – Tai'Ren se contorcia, usando toda sua força para puxar a arma.
— Não. Você vai acabar enfiando isso no próprio pé.
— Você nem se importa comigo! – Retrucou Tai'Ren. – Então, dá!!!
— Que seja, o Ao'nung não ia gostar nada disso. Então, não!
— Eu vou pescar! Quero peixe! - A voz de Tai'Ren começou a embargar ao pensar no Metkayina lhe mostrando como usar a lança. – Eu tô com fome! Não quero mais frutinha!
Neteyam não mudou sua posição e agora o garoto chorava, ainda puxando a lança. Suspirou lentamente, sentindo suas orelhas protestarem diante dos gritos alto e chorosos:
— Pode chorar, mas o que você acha que vai conseguir fazer com algo que você nem aguenta segurar?
Tai'Ren balbuciava palavras completamente incompletas e desconexas. Mas, como se recuperasse momentaneamente sua dicção, ele começou a rosnar outra vez, em meio ao choro:
— Solta! Você é mau, Neteyam! Eu quero pescar! Solta!
Ele repetiu aquilo tantas vezes que o Omatikaya rapidamente esqueceu da sonolência, despertando o estresse costumeiro:
— Você quer tanto assim peixes!?
— Sim! – Choramingou o menino.
Neteyam então soltou a lança e caminhou com passos pesados até a lagoa. Imediatamente puxou uma flecha e, cravando seus olhos dourados agilmente em um alvo, atirou. O primeiro.
Puxou outra flecha. Mais um peixe.
E então outro.
E outro.
Tai'Ren estava de queixo caído quando o adulto virou para encará-lo.
— Está bom pra você?
Sua única resposta foram os soluços que restaram do chorinho manhoso. As bochechas um pouco magras demais estavam molhadas de tantas lágrimas. Neteyam balançou a cabeça, puxando os peixes empalados por suas flechas, agradecendo-os internamente pela vida cedida.
— Francamente... – Resmungou baixinho. – Esses gritos enlouquecem qualquer um.
Os olhos cinzas brilharam ao ver Neteyam segurando tantos peixes presos nas flechas. De imediato, Tai'Ren se empolgou, esquecendo completamente do escândalo que tinha feito e da sua raiva para com o na'vi da floresta.
— Tô com fome!
— Eu sei, eu sei. Anda logo, vamos voltar.
Neteyam pegou a lança antes que a criança se lembrasse de sua existência novamente e iniciasse outra crise de rebeldia. Caminhou pela floresta, revirando os olhos ao ver Tai'Ren tentando acompanhar seu ritmo pulando freneticamente. O garoto passava a mão na barriga e tagarelava sem parar sobre estar com fome e querer peixe.
O Omatikaya fitou momentaneamente a lança em suas mãos, sentindo novamente o vazio causado pela ausência de seu amor. Procurando não ceder aquelas emoções, distraiu-se ouvindo Tai'Ren cantarolando e pulando, em uma ansiedade quase desproporcional ao que receberia.
Quando finalmente chegaram ao acampamento. Tai'Ren sentou-se ao lado de Ao'nung, abraçando-o enquanto Neteyam acendia a fogueira para assar o quanto antes os peixes que havia pescado.
Momentos depois, quando os peixes já estavam no fogo e o cheiro começou a subir, Tai'Ren desgrudou de Ao'nung e se sentou para observar a comida, sorrindo. O Sully, por sua vez, fitava o fogo, sem muito ânimo.
Diversos pensamentos tortos e assombrosos se criavam em sua mente, até que foi trazido à realidade pelo garoto:
— Você pesca errado, Neteyam. – Comentou Tai'Ren, distraído.
— O quê?
— O Nung me disse como se pesca. – Justificou. – A gente precisa entrar na água bem devagar pra não assustar os peixes...
Sua voz foi virando um sussurro, como se quisesse ilustrar o que tinha aprendido. Para deixar ainda mais real, ele se ergueu dobrando os joelhos e erguendo um dos braços como se tivesse uma lança.
Ele então continuou:
— Depois, você acalma o coração assim, ó: - Ele respirou profundamente várias vezes. – Pra se concentrar! Aí você vai lá e joga a lança!
Ele fez um movimento brusco, tentando imitar o que tinha visto.
— E pronto! Tem peixe pra comer! – Concluiu Tai'Ren, orgulhoso.- Mas você não fez nada disso. Pescou tudo errado.
— A ideia de pescar é pegar peixes. Foi o que eu fiz. – Respondeu, averiguando os peixes no fogo. – Eu e o Ao'nung só aprendemos a pescar de forma diferente.
— Como assim?
Neteyam não queria realmente conversar com o garoto que ainda considerava um alvo, mas estava se sentindo exausto, então reagia instintivamente.
— Eu aprendi a pescar com meu pai na floresta. O Ao'nung nasceu nos recifes e sempre pescou igual aprendeu com a sua família.
Curioso, Tai'Ren voltou a se sentar perto da fogueira.
— Você tem pai e mãe, Neteyam?
— Tenho.
— E o Ao'nung?
— Também.
— E irmão, você tem?
— Sim. – Neteyam respondia pacientemente as milhares de perguntas.
— E irmã?
— Tenho duas.
— Você já viu a casa do Ao'nung? É verdade que tinha muitos peixes lá?
— Eu moro com Ao'nung. – Ele puxou um dos peixes do fogo, certificando-se de que estava assando corretamente. – E sim, na vila tem vários peixes.
— Por que você mora com o Ao'nung?
— Porque somos um casal. – Suspirou, começando a ficar mais cansado.
— O que é "casal"?
— É quando duas pessoas se gostam e decidem ficar juntas.
Tai'Ren pareceu refletir sobre aquilo por longos segundos, que para Neteyam foi como um grande período de paz.
Mas que infelizmente acabou:
— Se eu morar com o Ao'nung, a gente vai ser um casal? – Perguntou, confuso.
O Omatikaya primeiro queria responder que não havia a menor possibilidade dele morar na casa deles. Mas sabia que era com Ao'nung que precisava ter aquela conversa.
— Não, é diferente. Um casal é quando dois adultos que se amam decidem ficar juntos e talvez construir uma família tendo filhotes.
Tai'Ren exclamou um longo "Ah!" mostrando que agora tinha compreendido um pouco mais.
— É igual o meu pai e a minha mãe que tiveram eu?
— É.
Depois de mais um som de compreensão, Tai'Ren perguntou outra coisa, unindo diversas pecinhas em sua cabeça inocente:
— Você e o Ao'nung então tem filhotes?
—...Não.
— Por quê?
— Por que não para de fazer perguntas? – Neteyam soou ríspido.
Diante do tom nada amigável, Tai'Ren deu de ombros e se deitou na grama entretido em alguma brincadeira que Neteyam não fez questão de entender.
Os minutos passaram e, quando os peixes ficaram prontos, ambos se aprontaram para comer. Tai'Ren pegou uma tigela ansiosamente, mas quando mordeu, percebeu algo que lhe entristeceu um pouco.
— Não é gostoso igual o que o Ao'nung faz. – Sussurrou, desanimado.
Neteyam pousou os olhos dourados no companheiro que seguia desacordado, sentindo-se estranhamente inerte. Uma sensação estranha surgiu em seu âmago, ganhando pouco a pouco cada vez mais espaço.
— É... – Sua voz saiu fraca enquanto seus olhos agora se voltavam para a refeição amarga. – Ele costumava cozinhar pra nós. Eu nunca levei jeito com peixe.
Mastigou devagar os pedaços da carne macia, porém sem muito sabor. Suas mãos tremiam mais conforme ele pegava mais um pedaço, até que um sabor salgado tocou seu lábios, misturando-se.
— Neteyam...? – A voz de Tai'Ren soou apreensiva, mas já era tarde.
Um soluço escapou pelos lábios do Omatikaya enquanto o fluxo de lágrimas aumentava gradativamente. Seus olhos já não enxergavam com clareza o conteúdo da tigela em suas mãos. Os ombros tremeram pelos soluços potentes que segundos depois já preenchiam a clareira inteira conforme ele se debruçava em um choro copioso e muito dolorido.
Tai'Ren arregalou os olhos, sentindo imediatamente vontade de chorar também.
— Neteyam...- Choramingou baixo. – Seu peixe também é bom. Desculpa. Olha, eu vou comer tudo.
Mas o rapaz seguiu em seu pranto, deixando finalmente aquela sensação estranha se transformar em palavras:
— Eu sinto tanta falta dele... – Soluçou, falando com a voz falha. – E é tudo minha culpa. Minha culpa...
A clareira de repente parecia mais distante conforme Neteyam deixava seu coração esvaziar da dor intensa, mas não da saudade. Essa, ele sabia que só partiria quando finalmente Ao'nung voltasse.
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