Não sabe de nada
E sabe de tudo
Pois é criança do mundo
Nascida pra morrer
Caos – Mariana Fróes
Aneya abriu os olhos assim que seu corpo deitado ao lado da fogueira sentiu uma vibração muito profunda no solo, seguido de um som abafado, muito longe, mas que animou suas orelhas atentas.
— Explosão...? – Sussurrou, duvidoso.
Pensando automaticamente em Tai'Ren desprotegido na floresta, se levantou em um ímpeto protetor e enrolou o tecido que o cobria em torno do busto, improvisando uma blusa. Estava certo de que mais de uma hora havia se passado desde que se separaram. Nesse meio tempo, felizmente tinha conseguido se aquecer, embora suas pernas ainda doessem.
Com o coração palpitando de preocupação, Aneya se equipou com o fuzil de maneira desengonçada e a lança, aproveitando que já estava com as bolsas nas costas para sair o quanto antes. Decidiu não apagar a fogueira, para atrair quem quer que estivesse naqueles territórios.
De volta a floresta gelada, ele se encolheu ao ser recebido com os ventos fortes, característicos da região. Olhou de um lado para o outro, se perguntando em qual direção Tai'Ren tinha ido. Apertou a lança com mais força entre os dedos, tentando pensar com frieza, mesmo que seu coração pulasse no peito.
Se Tai'Ren havia saído para caçar em um território que ainda não haviam explorado e com alto risco de se perder pela visibilidade que costumava piorar com a neblina, o que ele faria?
— É claro! – Exclamou, correndo pelas árvores próximas da caverna, procurando marcas na madeira.
O frio o deixava terrivelmente mais lento e a agitação começava a piorar conforme perdia um tempo precioso tentando encontrar qualquer indício da direção correta. Rosnou, correndo de um lado para o outro, checando cada uma das árvores em seu caminho.
As vezes parava apenas para garantir que não havia movimentações por perto, com um pressentimento ruim tomando seu peito. Clamou a Eywa diversas vezes para que protegesse Tai'Ren e nem queria imaginar como reagiria caso o pior tivesse acontecido.
Quando o desespero começou a nublar seus sentidos de batalha, Aneya quase urrou, eufórico, ao constatar que de fato, Tai'Ren havia marcado as árvores e não perdeu tempo, acelerou o passo da maneira como podia, por conta das pernas doloridas.
Pelo padrão das marcações, Aneya constatou que provavelmente a estratégia do rapaz foi seguir bem próximo da margem do rio e manteve a lança pronta para encontrar qualquer presença hostil.
Ele caminhou por vários minutos, muito atento ao seu redor e contendo a vontade de simplesmente gritar pelo rapaz que procurava. Porém, os olhos azuis se arregalaram quando viu, ao longe, uma enorme coluna de fumaça.
Era distante, mas seu peito apertou, pois ele sabia que mesmo que Tai'Ren também estivesse afastado, quando visse aquilo, iria averiguar. Por isso, sem perder um segundo a mais, e esquecendo o corpo fragilizado pelo frio impiedoso, Aneya correu, seguindo o curso do rio, porém, ainda se escondendo entre as árvores.
Só poderia ser coisa do Povo do Céu. Somente eles poderiam deixar um rastro de destruição de tal magnitude. Sua fúria era apenas um dos sinais de que estava mais do que preparado para enfrentá-los, caso cruzassem seu caminho até Tai'Ren.
— Não vão tirá-lo de mim, demônios...! – Grunhiu, avançando ainda mais rápido.
Seus olhos ficaram fixos na mancha cinza de fumaça, que parecia aumentar cada vez mais à medida que ia chegando perto do local. Contudo, mesmo que estivesse correndo, a distância era grande e constantemente precisava parar para recobrar o fôlego ou ajeitar o pano no peito.
Entretanto, ao dar uma nova parada para ajeitar o tecido, notou a aproximação lenta de uma figura alta, que se destacava em meio a neblina que começava a ficar mais densa. Seus olhos se arregalaram.
— Tai'Ren!
Os olhos cinzentos encaravam o chão enquanto andava. Estava totalmente molhado e congelando, mas ergueu a cabeça com a voz familiar.
— Aneya...? – Sussurrou, imediatamente se aliviando ao ver o Metkayina correndo em sua direção.
Porém, o mais velho parou ao passar o os olhos sobre o outro e notar o que ele carregava. Foi instintivo dar um passo para trás.
— O-o que significa isso? – Perguntou, em alerta.
Tai'Ren baixou o olhar para encarar o corpo minúsculo e ferido em seus braços.
— Por que está com alguém do Povo do Céu? – Aneya insistiu, urgente e tornando a se aproximar. – Está ferido!? Encontrou eles? Não se preocupe, eu acabo com ele. Me dá.
— Não. – Tai'Ren deu um passo para trás quando o Metkayina tentou puxar o garoto de seus braços, o que só deixou os olhos azuis confusos. – Ele salvou minha vida, Aneya. Não podia deixá-lo lá. A floresta começou a queimar.
Aneya balançou a cabeça, completamente desnorteado.
— Mas... – Tentou formular suas dúvidas.
— Não temos tempo! – O mais novo o interrompeu e começou a caminhar outra vez. – Eu juro que te explico tudo assim que encontrarmos um lugar seguro. Mas agora temos que ir. A explosão deve atrair o Povo do Céu.
Absorvendo o tom preocupado do rapaz, Aneya analisou a enorme camada de fumaça uma última vez antes de segui-lo, porém, apesar da nítida preocupação com Tai'Ren, era impossível não torcer o nariz para a figura em seus braços.
— Vamos voltar para a caverna onde estávamos. – O menor quebrou o silêncio.
— Mas, não é perigoso?
— Se o Povo do Céu estiver na região, eles vão checar a explosão. Temos algum tempo. Só não podemos ficar muito. Como me encontrou?
— Você marcou as árvores.
Tai'Ren sorriu.
— Que bom que lembrou disso. Fiquei preocupado com você. – Admitiu.
— Eu digo o mesmo. – Aneya estava com tanto frio que suas bochechas não esquentaram. – Quando ouvi a explosão, fiquei com medo.
— Mas está tudo bem agora.
— Será? – O Metkayina não estava convencido. – Nós tínhamos que passar despercebidos pelo Povo do Céu, mas, olha pra você... está carregando esse... demônio.
Os olhos azuis se estreitaram para a visão do corpo pequeno e embrulhado em tecidos grossos e muito estranhos. O rosto estava parcialmente coberto pelo sangue que tinha escorrido da cabeça e manchado a máscara transparente.
Tai'Ren sabia que não adiantava discutir ali, e estava com muito frio para ficar conversando, então continuou andando, ignorando o vento na blusa ensopada.
Durante todo o trajeto, Aneya passava os olhos rapidamente pelos arredores, certificando-se de que não havia movimentações, seja na terra ou no céu. Nesse meio tempo, sua mente se nublava com pensamentos cada vez mais urgentes.
Aquele desconforto pelo período de calmaria deu lugar a certeza de que não estariam mais em paz. Quanto mais perto chegassem do objetivo, mais perigoso seria e Aneya sabia que qualquer hesitação dali em diante poderia ser fatal para eles.
Mas, ao mesmo tempo em que o medo o tomava internamente, havia também a sede de lutar. Por um instante, as palavras de Neteyam após analisar uma de suas lutas, reverberou em seus pensamentos:
— Você é um conflito, Aneya. Ao mesmo tempo em que tem todas as características de alguém que nasceu pra lutar, parece que aí dentro... – Ele apontou para seu peito. –...Não é isso que quer fazer. Se não quiser que um inimigo perceba isso e use contra você, precisa focar completamente na luta e não nos motivos que te fazem hesitar.
Ele não sabia exatamente o porquê estava pensando naquilo em um momento como aquele, mas talvez, fosse um sinal de que precisava estar menos ciente de sua dualidade.
— A neblina está ficando pior. – Constatou Tai'Ren, se mantendo bem perto das árvores que tinha marcado. – Isso é bom. Vai nos esconder caso voem por aqui.
— Melhor irmos mais rápido. – Respondeu Aneya, voltando a realidade. – Vamos acabar perdidos.
Trocaram um aceno e se focaram no caminho, até que finalmente, a caverna se revelou. A fogueira já tinha consumido toda a pequena pilha de madeira, e apenas um resquício de fumaça pairava pelo local, que em breve seria tomado pela neblina esbranquiçada.
— Consegue pegar mais madeira? – Tai'Ren questionou, colocando o corpo do humano no chão.
— Vai ficar bem sozinho com o demônio? – Respondeu, hesitante.
O mais novo colocou o arco e as flechas no chão e se aproximou do Metkayina, colocando as mãos sobre os ombros cobertos pelo pano.
— Eu consigo me defender de alguém nesse estado. – Disse Tai'Ren, sorrindo. – Não se preocupe com isso. Você parece menos gelado do que antes, isso é ótimo.
Aneya concordou com a cabeça, mas quando o rapaz tirou os dedos de seus ombros, foi instintivo o puxar contra seu peito, em um abraço apertado.
Os olhos cinzas se arregalaram. Seus olhos alcançavam os ombros do mais alto.
— V-você está bem, Aneya? – Sussurrou, quase esmagado e sem conseguir impedir o calor que tomou o rosto.
— Eu... achei que tinha acontecido o pior. Fiquei preocupado de verdade.
Com o tom frágil das palavras sussurradas pelo Metkayina, Tai'Ren não pensou duas vezes antes de deixar os braços envolverem a cintura alheia com firmeza.
Era difícil não pensar que por muito pouco não tinha morrido, mesmo assim, quis passar segurança ao outro:
— Eu não morreria lá. – Disse, baixinho. - Não depois de pedir pra você confiar em mim.
Aneya definitivamente não queria acabar com o contato e nem deixar de sentir as mãos que haviam descido ligeiramente para seus quadris, ainda mantendo o aperto e lhe causando um rubor no rosto, mas sabia que estava perdendo visão devido a neblina e que não aguentariam uma noite sem a fogueira, então se afastou a contragosto.
— Volto logo. – Sussurrou, evitando o contato visual para não mostrar o rosto quente.
— Toma cuidado. – Ressaltou Tai'Ren, o que o Metkayina respondeu com um aceno agradecido.
De volta a caverna, Tai'Ren aproveitou para tirar a blusa molhada que Aneya tinha emprestado e se aproximou do corpo do garoto. Tentou escutar o coração dele, mas a camada de roupas impedia.
O corpo não estava perfeitamente reto deitado, o que chamou sua atenção até entender que havia algo elevando suas costas, mas que estava por dentro do pesado casaco preto. Sem compreender qual o mecanismo para tirar o agasalho, Tai'Ren puxou o gorro marrom da cabeça ensanguentada, revelando os cabelos lisos e pretos, desgrenhados.
Inseguro de tocar no rapaz, apenas aproximou os olhos da ferida na cabeça, constatando que não parecia profundo, mas teria que limpar para ter certeza. Voltou sua atenção para o casaco, brigando um pouco com a vestimenta até encontrar uma pequena peça de metal, que ao puxar, abria a roupa.
— Por que vocês gostam de complicar as coisas? – Resmungou.
Com o agasalho aberto, Tai'Ren confirmou que havia uma bolsa nas costas do menino e que a blusa fina e branca de manga longa que ele usava por baixo estava embebida de sangue no ombro esquerdo.
— Voltei. – Aneya colocou a pilha de gravetos no local onde estava a anterior.
— Foi rápido. – Tai'Ren se aproximou, pegando cuidadosamente as bolsas nas costas do rapaz.
Antes que o maior pudesse perguntar, viu Tai'Ren puxando duas tigelas pequenas que costumavam usar para pegar água.
— Vou no rio. Preciso de água pra limpar as feridas dele. Fica aqui.
— O quê? Não vou ficar com ele!
— Aneya, por favor. – Os olhos cinzas lhe encararam em um misto de cansaço e urgência. – É só por alguns minutos. Prometo.
O Metkayina bufou e concordou silenciosamente, resmungando por Tai'Ren ter tanto poder sobre ele. Se sentou a uma distância considerável do garoto e manteve a lança a postos, com um semblante de poucos amigos por estar tão perto do inimigo e não poder terminar de matá-lo.
Conforme prometido, Tai'Ren voltou muito rápido, equilibrando com cuidado as tigelas para não derramar a água. Por fim, se sentou ao lado do menino e puxou sua bolsa, onde havia guardado um pequeno compartimento com as misturas medicinais que sua vó tinha preparado para viagem e algumas bandagens.
— Vai usar nossas coisas nele? – Aneya perguntou, incrédulo.
— Eu não sei se vai fazer mal a ele, mas é o que tem.
— Essa não é a questão, Tai'Ren! E se nós dois precisarmos?
— Não vou gastar tudo. – Respondeu, voltando a tarefa de tirar o restante do casaco e colocá-lo em um canto vazio. – Acende a fogueira. Está esfriando mais.
Um tanto mal-humorado, Aneya obedeceu e logo a caverna minúscula estava iluminada. Tai'Ren aproximou o corpo do garoto do fogo para mantê-lo aquecido. Aproveitou para arrancar a mochila de suas costas e procurou qualquer coisa interessante lá dentro.
Aneya se aproximou.
— Ei, cuidado! E se tiver algo perigoso aí?
A bolsa parecia uma miniatura comparada com sua mão, mas conseguiu tirar dela algumas coisas como roupas, que ambos julgaram esquisitas, uma caixa de metal repleta de pílulas brancas que não faziam ideia do que era ou pra que servia e um caderno cheio de anotações.
— O que diz aí? – Aneya esticava o pescoço para enxergar melhor os símbolos estranhos.
— Não sei dizer. – Admitiu o menor. – Entendo boa parte do que eles falam, mas não tive tempo de aprender a escrever. Parece ser algo sobre plantas e árvores. Olha.
Tai'Ren aproximou o caderno dos olhos azuis, mostrando uma série de desenhos do que pareciam ser flores. De qualquer forma, ele logo abandonou o objeto com Aneya e voltou a cuidar das feridas.
Puxou o punhal da cinta no peito e rasgou com cuidado a blusa branca e ensanguentada. Seus olhos imediatamente se arregalaram.
— Por Eywa... – Sussurrou, em choque. – O que aconteceu com ele?
Aneya deixou os olhos saírem do caderno para focar na imagem do busto de pele clara do rapaz. Além do sangue no ombro esquerdo, toda a metade direita parecia deformada, com a pele seriamente queimada.
Mas um outro ponto também chamou a atenção do Metkayina:
— Cadê a mão dele? A explosão arrancou?
Tai'Ren deixou os olhos vagarem pelo braço direito, de pele mais escura por conta das queimaduras e viu que o membro terminava na metade do antebraço.
— Não, as roupas estavam normais. Deve ser uma ferida antiga. Parece ter sido doloroso...
— Ele parece pequeno demais até para alguém do Povo do Céu, você não acha?
— É porque ele não é adulto. – Respondeu, mergulhando uma bandagem na água fria para limpar o ombro esquerdo do menino, ferido pelo tiro. – Talvez tenha a idade da Nan...?
Tai'Ren deixou a voz morrer em um tom duvidoso. Não entendia muito sobre o Povo do Céu para diferenciar uma criança de um adolescente. Todos pareciam igualmente pequenos.
— Isso é uma arma? – Aneya levou os dedos para um objeto na calça alheia.
— Parece pequena demais. – Tai'Ren analisou o que parecia ser uma arma de fogo, mas que nem se comparava com o fuzil que carregavam.
Aneya deu de ombros.
— Devem ser pra alguém do tamanho dele.
Com o peito do menino limpo do sangue, Tai'Ren finalmente conseguiu verificar se havia batimentos cardíacos e ficou um pouco mais aliviado com o sinal positivo. Aparentemente, além do tiro e do corte na cabeça, não havia ferimentos recentes.
Tentando se lembrar das coisas que tinha aprendido com Ronal, procurou fechar as perfurações da bala e passou um pouco de uma das misturas mais potentes que tinham trazido. Limpou a ferida na cabeça e, por ela não ser tão profunda, apenas enrolou uma das bandagens, de forma meio desengonçada já que a máscara atrapalhava. Aproveitou para limpar também o excesso de sangue na máscara incolor e puxou o casaco para cobrir o menino outra vez.
Momentos depois, já sentado ao lado de Aneya, Tai'Ren escutou ele quebrar o silêncio:
— O que aconteceu quando você saiu?
Os olhos azuis estavam muito atentos nas reações do outro e viu Tai'Ren desviar o olhar, com um semblante pesado.
— Vi fumaça e fui ver o que era. Uma vila na'vi foi destruída pelo Povo do Céu.
— ... Você viu? – Aneya sussurrou, sem saber ao certo se queria saber daquilo. – Se alguém sobreviveu?
Tai'Ren fechou os olhos, recordando dos momentos de terror que tinha passado.
— Ninguém conseguiu sair vivo. – Respondeu com um fio de voz.
Aneya suspirou, tentando conter as próprias emoções e colocou um dos braços ao redor dos ombros do outro.
— E onde o demônio entra nessa história?
— Eu...- Tai'Ren hesitou. – Fiquei paralisado na hora que vi tudo. O Povo do Céu me viu e eles tentaram atirar em mim, mas o garoto me empurrou. Isso acabou me salvando.
Aquilo não fez Aneya sentir mais do que o mínimo de empatia pelo rapaz desacordado.
— Como escapou?
— Quando eu deixei o medo de lado, lutei contra eles. – Os olhos cinzas procuraram os azuis, sem saber ao certo o que sentir. – E eu os matei.
— Você não fez nada de errado. Eles teriam matado você.
— Eu sei disso. É só que... – Ele voltou os olhos para a fogueira e terminou, com a voz emocionada. – Eu queria que meu esforço tivesse sido capaz de salvar algum irmão na'vi. Não queria matar só pra sobreviver.
Compadecido e sentindo a dor dele, o Metkayina apertou mais os dedos em seu ombro.
— Não fale como se fosse sua culpa. Se fosse possível salvá-los, você teria feito, Tai'Ren. Não tenho dúvida. Mas nem sempre vamos chegar a tempo.
— Eu não queria te contar sobre isso, sabe. – Revelou, piscando para espantar as lágrimas.
— Por quê? – Perguntou Aneya, levemente chateado.
— Porque não quero mostrar o quanto essas coisas me atingem. Eu me preparei por anos e, na primeira situação real envolvendo o Povo do Céu, eu teria morrido se... ele não tivesse me salvado. – Respondeu, gesticulando para o menino. – Não sinto que estou honrando todo o esforço que meus pais tiveram pra me preparar.
— Não dá espaço para pensamentos assim, Tai'Ren. – Aneya tirou o braço dos ombros dele e tocou seu queixo, fazendo os orbes cinzentos encontrarem os seus. – Se nós sobrevivemos até agora, foi por sua causa. Você está me ensinando tudo o que eu preciso pra sobreviver longe dos recifes. Tem muita coragem em você, porque é um guerreiro como eu. Mas ao mesmo tempo não é. Seu coração não foi feito pra guerra, por isso está sofrendo. Não significa que é fraco, só que é muito doce.
Surpreso pelas palavras, Tai'Ren sabia que se ficasse mais tempo olhando nos olhos claros, se perderia outra vez e não queria repetir o ocorrido na lagoa, então desviou o olhar.
— O-obrigado...- Sussurrou, nervoso.
Subitamente sem graça também, Aneya se afastou e por algum tempo a caverna ficou em silêncio, até que ele se lembrou do comunicador.
— Pega. – Passou o objetivo para Tai'Ren. – Daqui a pouco seu tio entra em contato.
— Ah... certo.
Ambos continuaram calados. O menor acabou se perdendo em pensamentos, que variavam desde o terrível embate contra o Povo do Céu, as estranhas feridas no corpo do menino misterioso e a fome que sentia.
O frio também não ajudava e logo ele estava encolhido perto da fogueira, vendo Aneya começar a tremer de outra vez, mesmo coberto com o pano. A noite havia chegado e ele nem se deu conta.
"Sobrinho? Mais um dia vivos?" A voz de Lo'ak foi um estranho alívio para cortar os pensamentos torturantes. Levou os dedos ao pescoço rapidamente.
"Oi tio. Sim, estamos bem."
"Ainda estão congelando?"
"Infelizmente, sim. Tô até com saudade de casa." Admitiu, com um riso deprimido.
"Se o mano e o boca de peixe escutarem isso, eles vão te buscar aí."
"Eu não duvido."
"É a primeira vez que você fala que está com saudades de casa...Aconteceu algo?"
Tai'Ren esperou um segundo antes de responder. Ele pensou com calma nas palavras que usaria, para não causar pânico em sua família.
"Encontrei o Povo do Céu hoje. Estou bem antes que pergunte, e o Aneya não estava comigo. Não nos ferimos."
"Eles viram você?" Lo'ak soou de uma forma séria, o que era bem incomum.
"Sim, tio. Mas... eu cuidei deles."
"Estão sendo perseguidos?"
"Não." Respondeu, se lembrando do tamanho do estrago que a bomba tinha feito. "Mas pode ser que comecem a chegar mais. Vamos seguir nossa rota quando amanhecer."
"Tinha aeronaves?"
"Não."
"E os veículos pesados? Como lidou com isso?"
"Não vi nenhum. Só soldados."
"Então, eles estão procurando vocês. Soldados nunca estão sozinhos." Afirmou Lo'ak. "Assim que amanhecer caiam fora daí. Se o Povo do Céu está de um lado, vocês vão para o outro."
"Mas estamos saindo da rota."
"Isso é o de menos. Caminhos existem aos montes."
"Entendido."
"Algo mais que precisa me contar?"
Tai'Ren olhou para o corpo do garoto na caverna.
"Não, tio."
"Certo. Lembre-se do que eu falei. Caiam fora o quanto antes, saiam da rota se for preciso e toma cuidado."
Trocaram uma despedida rápida e quando voltou a realidade, Aneya lhe encarava, confuso.
— Por que não contou sobre o demônio?
— Não precisamos preocupá-los. Além do mais, só estou impedindo que ele morra, não significa que vai com a gente.
— Tudo bem. – Aneya assentiu. – E qual as instruções?
— "Se o Povo do Céu está de um lado, vocês vão para o outro", "partam ao amanhecer" e "tomem cuidado".
— Então, vamos seguir um caminho diferente. – Supôs o Metkayina.
— Sim. – Tai'Ren admitiu, desanimado. – Só espero que tenha comida por esse outro lugar.
— Vamos conseguir. Agora descansa. Eu fico de olho nele.
Tai'Ren até pensou em retrucar, mas estava realmente cansado e faminto, então se deitou perto da fogueira e fechou os olhos, sabendo que nunca mais conseguiria tirar de dentro da sua mente a imagem de seus irmãos na'vi mortos e enfileirados em meio ao fogo.
***
— Como assim "não vamos agora"!?
O dia mal havia amanhecido e Aneya já estava pronto para partirem. A neblina havia dissipado, o que os deixava mais vulneráveis. A fogueira há muito havia se apagado, o que outra vez os colocava no frio intenso.
Tai'Ren o encarou, incerto.
— Ele ainda não acordou, Aneya.
— E o que isso importa?
— Ele salvou minha vida! Deixar ele aqui e ir embora, depois de tanto esforço para salvá-lo, não adianta nada. Ele parecia estar fugindo do Povo do Céu também, então podem captura-lo.
— E a sua solução é ficar aqui e arriscar nossas vidas por ele? – O Metkayina soou completamente incrédulo. – O Povo do Céu vai ser misericordioso com um deles, agora com a gente...
— Tudo bem. – Tai'Ren interrompeu, erguendo as mãos. – Podemos partir.
Aneya suspirou aliviado, mas o outro acrescentou:
— Eu vou carregá-lo e quando ele acordar, nos despedimos.
— O quê!? Não podemos levá-lo com a gente para o Santuário dos Ossos, Tai'Ren!
— Não foi isso que eu disse. – Retrucou o menor. – Nem sabemos quanto tempo falta para chegar! Ele deve acordar ainda hoje, Aneya.
O mais alto rosnou e virou de costas, sem responder. Estava verdadeiramente irritado e aquela era a primeira vez que sentia tal coisa com relação à Tai'Ren.
Percebendo a postura e começando a se preocupar com a ideia de Aneya se afastar dele, Tai'Ren se aproximou, sentindo o peito doer ao ver o rosto do Metkayina contorcido em uma expressão chateada.
— Eu sei que está preocupado...
— É, eu estou. – Aneya interrompeu, evitando manter contato visual.
— Acha que um garoto como esse ia ser algum perigo pra nós? Nós somos dois, ele está sozinho, ferido e mal chega na minha cintura.
— Não é só sobre a força dele, Tai'Ren. É o que ele representa! Como podemos ter certeza de que não é uma armadilha ou que ele não é mal-intencionado? O que você sabe sobre ele?
— Nada. – Admitiu. – Mas, ele parecia com medo também. Eu só quero sentir que retribuí o favor, Aneya. Olha pra mim.
A contragosto, os olhos azuis se voltaram para ele. Tai'Ren tocou seu ombro com gentileza.
— Você ainda confia em mim, não é?
— É claro que confio.
— Então, me deixa fazer isso. Se qualquer coisa acontecer, eu vou ser o primeiro a matá-lo. Por favor...
Eles trocaram um longo olhar antes de Aneya, baixar os ombros, derrotado.
— Certo, mas só até...
— Vocês pretendem perder quanto tempo aqui?
Ambos pularam com a nova voz a preencher a caverna. Imediatamente Aneya apontou a lança, mostrando as presas. O que fez o garoto erguer o braço sem a mão, já que o outro estava profundamente dolorido pelo tiro. Sua expressão era ansiosa.
O rosto estava rosado pelo frio, mesmo protegido pela máscara e seus olhos puxados eram muito escuros.
— Se for me matar, é melhor fazer isso agora. Talvez uma lança desse tamanho seja uma morte mais rápida do que o fuzilamento.
Aneya estava chocado com o fato do garoto falar sua língua e não desfez a postura defensiva. Isso até Tai'Ren tocar seu ombro outra vez.
— Está tudo bem. – Sussurrou, mantendo os olhos no garoto. – Quem é você?
— Isso não importa. Quanto menos souberem sobre mim, é melhor, não é?
— A quanto tempo está acordado? – Perguntou Tai'Ren. Aneya voltou a postura normal, mas ainda em alerta.
— Tempo suficiente pra entender que vocês não tinham planos de me entregar ou me matar assim que eu acordasse. – O garoto deu de ombros. – Mas essa discussão infinita foi bem ruim de escutar. Vocês enrolam demais, parece que querem ser capturados!
— Ótimo. – Disse Aneya, se virando para Tai'Ren. – Ele acordou e parece bem. Vamos embora?
— Quanto a isso...- O menino interveio, colocando o casaco, com uma expressão dolorosa por conta do tiro. – Eu estava pensando se... não teria um espaço pra mim na viagem.
Aneya mostrou as presas.
— Fica longe de nós! – Rosnou.
— Por que me salvou? – Tai'Ren insistia em entender um pouco mais sobre a figura.
— Eu não sei. – O menino resmungou, pegando sua bolsa. – Vocês mexeram nas minhas coisas?
— Por que quer ir conosco?
O menino até pensou em reforçar sua pergunta anterior ao ver seu caderno aberto, mas sabia que, por mais louco que fosse se enfiar naquela viagem com dois na'vis estranhos e enormes, aquela era sua maior chance de sobrevivência, então suspirou antes de dizer:
— Sei onde fica o Santuário dos Ossos e sinceramente, é um péssimo lugar pra visitar. Mas é pra lá que querem ir, não é?
Aneya arregalou os olhos e Tai'Ren ficou igualmente surpreso. Analisou o menino que sustentava seu olhar com muita firmeza e de repente sabia que, por menor que ele fosse, não era uma criança comum.
Talvez (e somente talvez), aquilo quisesse dizer alguma coisa. Tinha confiado todo seu destino a Eywa e duvidava muito que aquilo fosse uma coincidência.
De alguma maneira, os olhos escuros e muito maduros do garoto que tinha salvado pareciam deter um conhecimento que ele não tinha. Então, ajeitou a postura.
Ia escutar o que o garoto tinha a dizer.
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