“Flores são flores colhidas sem dó por alguém que ama e não quer ficar só”
Estava chapado e completamente fora de órbita, delirante, seco, acelerado, mas também um tanto quanto lento, alto e embriagado. As pupilas dilatadas, olhos cerrados e úmidos, lábios abriam e fechavam sem uma singela sílaba sair e até mesmo duvidava se o ar também saia, afinal, seu peito pressionava tanto as clavículas que seus pulmões pareciam duas cápsulas sendo esmagadas por um abraço doloroso.
Baekhyun respirou fundo uma vez antes de erguer o tronco e alcançar a lata de refrigerante em cima da mesa; o tatuador não bebia álcool desde a adolescência, nunca.
— Cara… onde você arrumou isso? — Baekhyun levantou o baseado, que estava quase na metade e o analisou bem devagar enquanto soltava a fumaça. Sehun, que estava do outro lado da sala riu desgastado e arrancou o cigarro da mão do mais novo, estranhando sua demora excessiva de reação quando percebeu seus dedos vazios.
— Jongin que trouxe. Eu acho que é daquele tailandês esquisitão que é completamente obcecado por ele, lembra?
— Tailandês esquisitão.... — Baekhyun encostou a cabeça na cadeira e seus olhos foram para as enormes paredes ao seu redor, em cima… Estavam no estúdio de Jongin, mais precisamente dentro da sala em que ele tatuava seus clientes. Os desenhos colados na parede preta deixavam Baekhyun extasiado, perplexo, intrigado. Como que Jongin podia ser tão sensível? Aqueles traços tão incertos traziam movimento, sentimentos e uma sensação estranha de estar no meio de uma alucinação visual com todas as cores fazendo-se presente dentro da percepção do mais novo ali presente. Não era a toa que Jongin tinha tantos fãs, clientes e admiradores, suas mãos pareciam ser lapidadas com o mais puro talento, daqueles que se vendessem em lojas todos com certeza comprariam igual compram anéis, colares e brincos de ouro. A criatividade excêntrica de Jongin reluzia em tudo que ele tocava. Baekhyun o chamava, na sua cabeça, de Midas.
— Na verdade não.
— Quê? — Sehun tragou o cigarro de maconha e olhou confuso para o outro.
— Não lembro de nenhum tailandês esquisitão.
Como se não tivesse feito uma viagem pelas paredes da sala de Jongin, Baekhyun voltou ao assunto que fez Sehun dar de ombros ao passar o baseado pro amigo indicando que voltaria para ajudar Jongdae na cafeteria. O tatuador fechou os olhos, tragando o cigarro com os pulmões abertos, engoliu a seco a fumaça áspera e encarou novamente a erva enrolada numa fina seda marrom. E lá ficou.
Uma vez prometeu a si mesmo que não fumaria mais cigarros e nem tabacos orgânicos, embora já fosse um adolescente perdido quando entrou em contato com um maço de cigarro em uma das festas que seu colega deu no último dia de aula do seu primeiro ano do ensino médio. Passou um tempo fumando sem dar suspeitas, mas quando sua mãe descobriu, sentiu-se culpado e decepcionado consigo mesmo, afinal, seu avô havia falecido por causa daqueles malditos cigarros. Sabia que não valeria a pena, e foi difícil. Estava tão habituado a fumar que quando voltava de um passeio de bicicleta e tomava uma cerveja escondido dos pais, a própria idéia de se recusar este prazer oral parecia bem ridícula e irreal. É verdade que não fumava como uma chaminé, Baekhyun contentava-se em comprar um maço a cada dois dias. Acontecia, às vezes, de ultrapassar a dose que havia prescrito fantasiosamente a si mesmo, mas, no dia seguinte, conseguia restabelecer a média imposta. Contudo, Baekhyun, na época havia compreendido que quanto mais se vigiava, mais regularmente contava os cigarros que tirava do maço, menos se preparava para parar de fumar.
Quando comprou chicletes de nicotina, Baekhyun leu na bula que o primeiro cigarro, aquele que se fuma de manhã, depois do café, é o indício mais determinante da dependência. “Mas logo aquele cigarro, como eu poderia abrir mão dele?” Baekhyun riu, lembrando que talvez aquele momento tenha sido o mais desafiante. Costumava pensar que a própria idéia de que um hábito prazeroso seja suprimido da sua vida parecia insustentável, mas não se iludia a respeito das suas fantasias, sabia o quanto o agradava brincar de fumar o último cigarro. Era simples: você se prepara para fumá-lo, diz que chegou o fim, que não voltará a repetir o gesto que está fazendo no momento, que guardará apenas uma memória desse gesto. Contudo, Baekhyun já havia notado como os ex-fumantes procuram, às vezes, no bolso, um maço que já não está lá há anos, como eles aproximam o indicador do seu lábio mais carnudo, pensando, desejando. O reflexo resiste e você pensa no cigarro que o condenado à morte fuma com supremo deleite antes da execução, imagina-o lançando baforadas de fumaça na manhãzinha, naquele momento final em que o último gesto condensa toda a potência da vida. Lindo.
E era por isso ser impossível imaginar que uma decisão como essa seja tomada em qualquer outro momento que não seja à noite. No entanto, Baekhyun tentou tomá-la depois de ter fumado o cigarro do café-da-manhã. Quando conheceu Jongin, já se considerava um pouco não-fumante, separava facilmente a dependência do prazer e enxergava tudo aquilo como um desafio filosófico. Passou a fumar de forma episódica, mas quanto mais esses episódios se repetiam, mais pareciam circunscrever o prazer para isolá-lo daquela obsessão, só para conservar o valor excepcional.
“Quer experimentar outra coisa?”
“Que coisa?”
“Algo diferente, mais gostoso, inebriante”.
“Acho que sim…”.
Baekhyun riu sutil lembrando-se do dia em que seu ex-namorado apresentou a maconha em sua vida. Devaneando nesses pensamentos, novamente a levou aos lábios secos e tragou como se sua vida dependesse daquilo, cerrou parcialmente os olhos e soltou aquela fumaça característica por toda a sala, limitando sua visão da parede à frente coberta pelas ideias estranhas e incríveis que saíam da cabeça de Jongin. Olhou novamente, daquele mesmo modo lento e analítico para o baseado entre seus dedos finos, escorregando nas falanges até contornar o prazer de tê-lo ali. “Bom”, pensou, “meu avô morreu por causa da nicotina, não por causa de uma ervinha boba. Acho que não tem problema”.
O tatuador de cabelos cor-de-rosa-de-camélias sabia muito bem que havia trocado seis por meia dúzia. Quando não fumava, tinha a impressão de estar mergulhado em um estranho estado de inércia, não conseguia mais associar as idéias, a memória se desagregou, não via mais nitidamente o que o cercava, não prestava nenhuma atenção ao que lhe diziam, não sabia mais o que pensar sobre o que quer que seja. Antes de ficar íntimo da maconha, acreditou que teria a liberdade reencontrada como se pudesse viver outra vida depois de deixar de fumar, como se pudesse, enfim, encher os pulmões. Todavia, isso nunca aconteceu.
O que mais lhe desagradava é que se abstinha de fumar, não tinha mais idéias, como se do consumo regular de nicotina viesse o ritmo cadenciado do pensamento e com os cigarrinhos de maconha percebeu que quando os fumava, seus neurônios reencontram aquela intensidade de ação que estava a ponto de perder, era como se ele estivesse mantendo um padrão de comportamento: fumar, tragar e soltar para poder pensar, sentir e viver. Com o tempo percebeu nenhum sinal de angústia ou nervosismo, nem a falta da nicotina e sempre estendia uma discussão um tanto quanto exaustiva com Jongdae sobre o fato de que a tal da questão existencial, fumar ou não fumar, não tinha mais nenhuma razão para ser formulada, ela é subtraída como uma ultrajante incapacidade imposta pelo despropósito de uma concepção excessivamente parcimoniosa da saúde.
Então, Baekhyun fumava maconha sem culpar-se de estar seguindo o caminho do avô ou se preocupando demais com sua saúde. Era uma cerimônia.
— Ei, Baekhyun. — ouviu longe, bem longe, uma voz acolhedora demais lhe chamar de seus devaneios.
— Nini?
— Sim, sou eu. — Jongin riu daquele apelido um tanto quanto questionável que Baekhyun havia dado a ele quando começaram a trabalhar juntos. Jongin era seis anos mais velho, oras.
— Quer um tapinha? — Baekhyun estendeu o baseado na direção do amigo que recusou.
— Tenho um cliente daqui quinze minutos.
Jongin disse e esperou. Baekhyun sequer deu ouvidos e continuou com a cabeça escorada na cadeira, tragando a já quase ponta do baseado até que teve a estranha sensação de estar sendo observado.
— Que foi?
— Baekhyun, preciso que você saia da sala.
— Por que?
— Porque eu tenho um cliente daqui a pouco, ué.
— Quem?
— Eu.
— Daqui a pouco?
— Sim, precisamente em treze minutos. — Jongin disse risonho e checou novamente a hora no celular, tirando seu casaco e o colocando atrás da cadeira em que Baekhyun estava sentando.
— Sei, sei... Vou vazar. — Baekhyun apagou o brasa da pontinha insignificante que estava queimando na sola do seu coturno e levantou-se da cadeira, virando-se para Jongin.
— ‘Tava show de bola, viu, pede pro tailandês trazer mais quando vier pra cá.
Baekhyun deu um tapinha no ombro direito do amigo e sorriu sapeca antes de sair em direção a porta do estúdio e subir os poucos degraus que davam para a cafeteria. Jongin, perplexo, arrumou o óculos de grau nos olhos e encarou o espaço já deixado por Baekhyun.
— Que tailandês…?
▽
Baekhyun havia tatuado duas meninas naquela manhã e espantou-se pela coerência que levou seu trabalho naquele curto espaço de tempo entre o baseado excepcional e suas responsabilidades profissionais. Já era quase hora do seu almoço quando se viu apoiado na vassoura, inebriado pelas flores da loja da frente. A floricultura dos Park era honestamente o lugar mais lindo de todo o mundo e seu florista também, o tatuador nem disfarçava.
— Baekhyun! Varre mais e sonha menos.
— Ai! — esbravejou com o cutucão desnecessário que Jongdae fez em seu braço, o tirando do sonho lúcido que estava tendo com àquela loja e seu florista.
— Vai logo pra gente poder ir almoçar, cara.
— Eu hein, ‘tô aqui te ajudando e você me trata assim?
— Que drama, bro, eu só ‘tô com muita fome! Para de fazer essa cara de cachorro sem dono pra mim, eu sou sensível.
— Desde quando?! Não foi tu mesmo que disse que bateria numa criança por um milhão de won?
— Ei! — Jongdae virou-se do balcão e jogou o pano úmido em Baekhyun que o xingou. — Isso foi há muito tempo, tá bom? Eu mudei, sou pai agora.
— E o que ser pai tem a ver com caráter, cara?
— Sensibilidade, meu caro amigo, sensibilidade.
— Nem toda criança desperta isso, Jongdae. — uma terceira voz fez-se presente e ambos olharam Soojung atravessar o salão e contornar o balcão. — Vai por mim, minha irmã desenvolveu gastrite nervosa depois que teve minha sobrinha. Sensibilidade uma ova.
— Não pensa em ter filhos, Soo? — Baekhyun aproximou-se do balcão e a morena o encarou perplexa como se o tatuador tivesse confessado um crime.
— Fumou o que hoje, Baekhyun? Até parece que vocês não sabem que tudo o que eu menos quero nessa vida é ter filhos.
— Verdade, noona, não faça essa idiotice, não tem volta! — Jongdae choramingou enquanto a abraçava de lado e forçava uma dramatização exagerada de um choro preso na garganta, mas Soojung riu.
— Sensível, é? — irônico, Baekhyun arcou uma das sobrancelhas para toda aquela cena e soltou o ar pela boca, negando-se em silêncio implicar com o mais novo.
No momento seguinte alguns clientes se dirigiram a Soojung como se estivesse contando um segredo de Estado ou até mesmo imaculado alguma passagem bíblica de tão baixo e receosos que falavam. “Tenho horário com Kai”, o nome artístico de Jongin fora ouvido e Baekhyun sorriu terno, lembrou-se de todos os ensinamentos e momentos que ele passou com o mais velho enquanto o rosado aprendia as noções básicas de tatuagem, treinos e muitos chás de gengibre o salvaram das ruas. E talvez, um dia, podia ser exatamente como seu amigo.
— Bora comer? — Jongdae o tirou dos pensamentos, puxando seu braço rente ao corpo.
— Vamos comer naquele restaurante de vitelas?
— ‘Tá me achando com cara de banco? Eu lá tenho dinheiro pra isso, vamos comer na barraca da tia do Minseok.
— Quem?
— O mané que mora comigo, fomos lá semana passada! Que saco Baekhyun, tá fumando tanta maconha que não se lembra de mais nada?
— Não se lembra de que?
Aquela voz, aquela voz que fazia todos os céus embriagarem de harmonia, que deixava Baekhyun em uma paz quase angelical, uma voz tão doce ao seus ouvidos, aquela voz sincera que lhe fazia cócegas nos ouvidos e um aperto estranho no peito. E também aquela aura inconstante e mutável, poética e um coração boêmio, assim como os olhos são os livros que Baekhyun mais quer ler, torna-se o autor das palavras refletidas nas orbes profundas que o estúpido florista tinha.
— Chanyeol! Nem vi você chegando. — Jongdae exclamou e percebeu a petrificação do colega ao lado. Limpou a garganta.
— Ah, oi, Cha- — Baekhyun travou ao ouvir sua voz dar um agudo desnecessário. Pigarreou e olhou para os próprios pés, terminando baixo:
— E aí, Chanyeol.
— Vão sair para almoçar?
— Sim, eu e o Baekhyun estávamos indo até aquela barraca na rua de trás, é de uma tia de um amigo meu e…
Baekhyun desligou os ouvidos, a voz de Jongdae afastou-se tanto ao ponto que o tatuador achou ter ficado surdo. Engoliu em seco pra ter certeza que seus ouvidos não haviam tampado e fitou seus sapatos, coturnos negros e um pouco sujos por conta da chuva que teve esses dias e alagou seu pequeno canteiro de flores na lavanderia. Naquele dia esqueceu a janela aberta e agora seu sapato favorito está sujo e não sente a menor vontade de limpá-los. Em contraste, os sapatos de Chanyeol estavam impecáveis: um tênis tão branco que Baekhyun teve a certeza que se aquilo saísse no sol seus olhos iriam arder. Chanyeol era tão arrumado, sempre tão comedido em todos seus detalhes, o blazer cáqui caia muito bem na blusa branca lisa e calça jeans, mas de todos os detalhes, o que Baekhyun mais gostava no florista era suas mãos, imensas, envoltas num relógio chique demais para que o tatuador guardasse a marca. Aquilo sim deixava Baekhyun louco.
As mesmas mãos que delicadamente cuidavam de flores, também sabiam expressar fortaleza, luxúria e firmeza. Baekhyun talvez fosse estranhamente fascinado pelas mãos de Chanyeol.
— E então, Baekhyun? — Jongdae o chacoalhou e o tatuador o olhou perdido.
— Sim?
— Chanyeol vai almoçar com a gente, pode ser?
— O Chanyeol….
— Sim, eu mesmo, prazer! — Chanyeol tentou fazer uma gracinha, mas Baekhyun parecia muito chocado para qualquer coisa. Jongdae revirou os olhos, pois aquilo era literalmente ridículo.
— Vamos logo! — Jongdae arrastou o tatuador para fora do café e Chanyeol riu quando Baekhyun deu-se por si da situação e começou a xingar tanto o amigo que suas orelhas ficaram vermelhas.
— Jongdae disse que a comida dessa mulher é sensacional, já provou?
Baekhyun embriagou-se novamente com a voz do florista invadindo seus ouvidos e suspirou. Chanyeol claramente estava tentando começar uma conversa e Baekhyun parecia um idiota.
— Bom, não tenho muito o que reclamar…
— Acho que o Jongdae só puxa o saco dela por ela ser a dona do apartamento.
— Ela que é a dona do apartamento?!
— Não sabia? — Chanyeol o olhou surpreso e seus olhos imitavam o de uma criança inocente, algo que Baekhyun simplesmente não conseguia lidar.
— Bom, eu não costumo dar bola para... noventa por cento do que o Jongdae fala. — Baekhyun deu de ombros fitando as costas de Jongdae um pouco a frente, falando ao celular.
— O amigo dele é você, mas sou eu quem sabe das coisas?
— Não se ache, você sabe só de uma coisa que eu não sei. — Baekhyun tentou uma provocação, de algum jeito, estava se sentindo extremamente confortável tendo aquele tipo de conversa com o florista. Ah, ele era tão aconchegante.
— Será? Você sabia que ele está saindo com a vendedora da loja de roupas da esquina, né?
Baekhyun parou de andar e encarou Chanyeol, penoso.
— Agora eu estou oficialmente me sentindo culpado.
Chanyeol riu e aquele riso, alto e largo, acertou Baekhyun como uma flecha afiada. Aquele tipo de sorriso feliz que reflete a paz, enche os olhos, dança com o silêncio do mundo, transborda da alma e deixa o tatuador completamente sem palavras; a tradução do sorriso que Chanyeol tinha não caberia no infinito de vocabulários existentes. Aquele sorriso era para Baekhyun, como o sol era para as flores.
Aquele almoço seria longo. Literalmente.
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