“São as memórias as minhas maiores feridas, dói todos os dias lembrar que ele já foi meu, mas que é agora é do mundo.”
Nova York, Estados Unidos
Junho de 2019
Luna Valente
— Luna, você tem certeza absoluta que não quer ir, certo? — Rafael insistia pela milionésima vez nos últimos 30 minutos para que eu fosse com ele em uma festa e em todas as milhões de vezes eu recusei.
Conheci o Rafa logo quando cheguei nos Estados Unidos, ele fazia dança no mesmo estúdio que eu fazia ballet, e de cara já nos demos bem. Alto, bronzeado e loiro dos olhos azuis, muito estilo surfista. Ele é um gato com todas as letras, se não fosse por jogar no mesmo time que eu já teria ficado com ele faz tempo. Ao contrário disso, encontrei no Rafa alguém que eu podia confiar no meio de um novo mundo cheio de pessoas desconhecidas. Era como um irmão mais velho para mim, dava sermão quando eu fazia algo errado demais e consolava-me quando estava para baixo. Com o tempo acabei perdendo contato com os meus amigos do Roller, a única com quem ainda converso é a Nina, apesar de que não conversamos tanto quanto antes, pois ela decidiu estudar em Oxford com o Gastón e eu vim morar nos Estados Unidos.
— Eu não quero correr o risco de acordar na cama de um desconhecido novamente e com a cabeça quase explodindo. — Não era mentira, mas também não era totalmente verdade. Eu não queria ir porque acordei sentindo uma sensação estranha dentro de mim, uma tristeza que há tempos eu não sentia. Então preferi ficar em casa me entupindo de pipoca e doces, assistindo qualquer programa piegas que estivesse passando na televisão. — Sem contar que do pouco que eu lembro foi horrível, ele era um brutamonte e não senti nenhum prazer.
O rosto do Rafa ficou completamente vermelho por causa da gargalhada que ele soltou com o que eu disse, teve que passar alguns minutos para voltar ao seu estado normal.
— Talvez isso aconteça porque você não aproveita o momento, docinho. De alguma forma você ainda está ligada ao seu ex e tudo que já fez com ele e vai tentar efetuar com outra pessoa acaba te fazendo sentir saudades. — Ele saiu pela porta antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Aquilo não era verdade, fazia tempo que eu esqueci daquele garoto, tá vendo só, nem lembro mais o nome dele. É alguém do passado que vai ficar lá para sempre.
Com a intenção de pôr em prática a ideia que estava em minha cabeça, coloquei a pipoca para fazer no microondas e fui até o meu quarto pegar um cobertor. Com tudo já pronto, joguei-me no sofá e liguei a televisão em um canal onde passava um filme de comédia romântica, já havia assistido aquele programa mil vezes e em todas elas eu ria horrores das mesmas piadas sem graça.
Senti a vibração do meu celular abaixo de mim e ocupei-me em procurar o aparelho, para poder atender quem quer que fosse que estivesse me ligando tão tarde da noite. Quando encontrei, tratei de atender sem ao menos olhar para o verificador de chamadas e ver quem ligava.
— Alô! — a linha ficou mundo. Pensei que provavelmente fosse o Felipe perguntando se eu estava bem e preparada para a próxima fase da competição ou até mesmo o Rafael, para contar que eu perdia uma festa bombástica e que ele se divertia muito.
Depois de longos segundos apenas ouvindo a respiração no outro lado da linha, resolvi conferir o verificador de chamadas. Meu corpo ficou estático e meu coração parou de bombear, fazendo com o que o sangue não corresse por minhas veias. Eu deveria está pálida. Não era ninguém mais ninguém menos que Matteo Balsano, ele ligava-me depois de dois anos desde que se foi e me deixou em pequenos fragmentos espalhados por todos os lados.
— Matteo... Por que você está me ligando? — minha voz já embargada pelo choro saiu fraca e quase inaudível, respirei profundamente tentando acumular a maior quantidade de oxigênio e que com ele viesse junto a minha coragem.
— Eu não sei. — Ótimo, ele não sabia. Eu muito menos, não sabia porque eu estava tão nervosa e porque meu coração agora batia descontroladamente contra o meu peito. Ouvir sua voz foi como acender algo que estava morto dentro de mim ou que eu pensava que estava morto, mas que na realidade permanecia intacto, como se todo o esforço que eu fiz durante todos esses meses não tivesse validado em nada. Agora percebia que negar não adiantou coisa alguma, que sair falando mal dele para todo mundo não teve nenhum resultado. Meu coração ainda lhe pertencia e eu o amava com todas as forças.
Preferia que ele não tivesse ligado, não tivesse falado nada, preferia continuar negando para mim mesma que nada daquilo era verdadeiro, que ele era alguém do meu passado e nada do que eu sentia naquela época continuava presente dentro de mim. Era mil vezes mais doloroso, porque são as memórias as minhas maiores feridas, dói todos os dias lembrar que ele já foi meu, mas que é agora é do mundo.
-— Talvez eu só estivesse com saudades. — Engoli todos os soluços que estavam presos em minha garganta, não iria chorar, pelo menos não para ele perceber o quanto eu estava triste e abalada por tudo isso. Ele não merecia minhas lágrimas, não merecia nada vindo de mim.
— Matteo, você não tem esse direito. — sussurrei e uma lágrima desceu por meu rosto, e depois outra e mais outra. — Não depois do que você fez, não sei se você lembra, mas não fui eu quem fui embora e te deixei. Você tem ideia do quanto eu fiquei destruída? De quantas noites eu passei em claro sem conseguir dormir, com o celular na mão esperando uma mensagem sua ou criando coragem para te enviar uma? Mas sabe por que eu não enviei nada? Porque a escolha foi sua e eu não poderia interferir. Então não, você não tem nenhum direito de dizer que está com saudades, seu idiota — alterei-me e naquele momento já estava berrando com ele por telefone, gritando toda a minha dor. Não queria que as coisas tivessem chegado aquele ponto, mas foi necessário para mim encerrar aquele ciclo dizendo tudo que eu sinto e senti. Não deixaria de amá-lo, isso é um fato, mas faria o possível para que aquilo não mais me atingisse
— Eu sei, e eu sinto muito.
— Acho melhor desligarmos, não temos nada para conversar. — funguei. Sentia-me incompleta e quebrada.
— Só... não esquece de uma coisa. Eu nunca deixei de te amar. — não esperei que ele falasse mais nada depois daquilo e desliguei a chamada com pressa, ouvindo logo em seguida os bips frequentes que indicavam o fim.
Por instinto, fui andando até o meu quarto devagar e ao chegar lá, abri a gaveta da minha cômoda e peguei a minha caixinha de jóias. De dentro retirei o anel que Matteo me deu alguns anos atrás e que eu guardava desde então. Não era nada muito extravagante e caro, era bem simples, desses anéis de borracha que as crianças gostam de brincar. Não me importava com isso, ele era algo que me trazia boas recordações, para mim bastava.
" — Esse anel é mágico e sempre que você usar vai ter sorte e conseguirá realizar o que desejar. — Matteo estava bastante sorridente naquele dia, o seu discurso me fez revirar os olhos, mas no final acabei sorrindo e contagiando-me com toda a sua felicidade. Sabia que todo mundo acharia graça daquilo, mas para mim não era, eu acreditava em suas palavras."
Retornei a olhar para o anel e sem ao menos esperar ele começou a piscar sua luzinha e dentro de mim algo voltou a se quebrar. Aquela sensação incômoda de vazio estava novamente presente dentro do meu peito.
" — Sabe de uma coisa, este anel funciona e vai acender todas as vezes que eu pensar em você. Mas olhe bem, ele está apagado e, acredito que não vai acender nunca mais. — Suas palavras mataram todos as sensações boas dentro de mim, substituindo-as pelas piores sensações que um ser humano poderia sentir. Eu estava triste e... sem rumo? Não sabia ao certo, apenas tinha a certeza de que tudo aquilo era horrível."
Voltei para a sala, o anel ainda estava entre minhas mãos fechadas, levei-as até o meu peito e uma lágrima atrás da outra foi escorrendo por meu rosto. Afundei no sofá e chorei tudo o que estava dentro de mim. Não queria que o Rafa chegasse e me visse naquela situação deplorável, então liberaria tudo agora. Pois entendia muito bem que minhas feridas eram apenas minhas, que ninguém mais além de mim era capaz de curá-las.
Após a sessão de choro daquela noite, acabei adormecendo no sofá sem ao menos me dar conta e só fui acordar no outro dia de manhã com o Rafael chegando em casa. Menti para ela dizendo que estava muito focada no filme que passava e por isso acabei dormindo no sofá. Ninguém precisava saber que na realidade eu dormi porque fiquei cansada de chorar por um babaca que acabou com o meu emocional.
Não conseguia entender tudo isso que eu sentia, toda essa saudade. A realidade era que eu não sabia se algum dia conseguiria perdoar o Matteo por todo o mal que ele me fez, por todas as palavras que me magoaram, por todas as mentiras contadas. Ele nunca pensou antes de agir, sempre colocou suas prioridades na frente do nosso relacionamento sem se importar com o que eu sentiria, inventou um namoro falso para que eu mantivesse-me afastada. E mesmo com todo o mal que ele me causou, eu não conseguia odiá-lo, não conseguia colocar um ponto final nos meus sentimentos. Eu era uma idiota.
O anel passava por minhas mãos, eu tirava do dedo e em seguida colocava de novo, sem saber ao certo o que faria. Tinha medo de não usá-lo e acabar acontecendo algo, porém, removi isso da minha cabeça, era tudo psicológico, uma coisa criada por minha mente. Aquele anel não era mágico coisa nenhuma, tinha que me libertar daquilo de uma vez por todas. Retirei o anel de uma vez do meu dedo e respirei fundo, colocando-o dentro da bolsa que eu trazia comigo.
Paula apareceu no camarim informando que as apresentações já iriam ser iniciadas e que era necessário a presença de todos os competidores no backstage, para que todas saibam seu momento de entrar na pista. Pisquei algumas vezes segurando as lágrimas que queriam ser derramadas e segui atrás dela, chegando lá vi as outras patinadoras se aquecendo, Felipe chegou perto de mim entregando-me os patins — agora branco com alguns detalhes em azul — e não tardei em colocá-los nos pés.
Encontrava-me extremamente nervosa, hoje era a semifinal da competição e apenas quatro de oito patinadoras passariam para a grande final e lutariam pelo título. Vinha ensaiando bastante nas últimas semanas, entendia que aquele prêmio seria um grande passo para eu chegar onde desejo, não queria jogar todo o esforço que eu vinha fazendo no lixo, simplesmente não podia.
Posicionei-me na grade esperando o exato momento que o apresentador chamasse por meu nome e eu entrasse na pista. Coloquei-me no centro, ouvindo quando os primeiros acordes da música foram tocados e comecei a minha apresentação. Tudo corria super bem, a realização de todos os movimentos saía perfeitamente. Foi quando olhei em direção a minha mão e tudo ao redor pareceu sumir, escutava alguém falando em minha cabeça, entretanto, não conseguia entender as palavras proferidas. De repente tudo voltou ao normal e escutei várias vozes perguntando o que tinha acontecido, senti mãos tocarem em minha coluna, movendo-me para fora da pista.
— Luna, o que aconteceu? — Agora eu estava estática, sentada em uma cadeira no camarim com os olhos fixos em um ponto qualquer, enquanto Felipe se encontrava de frente para mim esperando uma resposta minha.
— Eu não sei. — Respirei profundamente e senti lágrimas descerem por meu rosto. — Eu simplesmente não sei e peço desculpas por ter te decepcionado tanto.
— Calma meu anjo, não me decepcionou, você foi super bem, apesar de não ter conseguido finalizar a coreografia. Estou apenas preocupado. Luna, não é de hoje que você está estranha, precisamos tratar disso. — Sentou-se ao meu lado segurando em minhas mãos e fazendo eu encará-lo.
— Não entendo o que você quer falar..
— Você precisa de ajuda profissional, não sei o que se passa em sua vida, mas é perceptível que é algo que lhe deixa abalada, entorpecida. E antes de tudo precisamos tratar o seu psicológico.
— Eu não estou louca Felipe, eu apenas me desconcentrei um pouquinho — as palavras saíram rapidamente de minha boca e eu tentava controlar meus pensamentos que estavam uma loucura.
— Eu estou falando de um terapeuta, Luna. Mas o melhor é conversamos sobre isso depois.
Após isso não falei mais nada, ele ajudou-me a tirar os patins e eu calcei o tênis que eu trouxera comigo. Saímos em direção a saída e quando cruzamos as portas, uma enxurrada de luzes foi direcionada em meu rosto. Paparazzis. Os seguranças impediam que eles se aproximassem de mim e Felipe abraçava-me tentando esconder o meu rosto das câmeras insistentes.
Várias perguntas eram feitas pelos jornalistas ali presentes, eu tentava ao máximo ignorar todas elas. Podia não respondê-las diretamente, mas cada uma martelava em minha cabeça, dúvidas incessantes.
"O que passava na sua cabeça quando estava dentro da pista?"
"Você vai desistir da carreira como patinadora?"
"Como você se sente com esse fracasso?"
Essas eram algumas das diversas questões colocadas em jogo. Agradeci mentalmente quando senti meu corpo sendo empurrado para dentro de um carro, encolhi-me contra a porta e fechei meus olhos tentando esquecer daquilo. Queria apagar aqueles momentos da minha mente para sempre, queria entender o que se passava em minha cabeça e principalmente, o que se passava em meu coração.
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