“Era como se tudo tivesse aos poucos esvaindo-se e no final, era apenas eu e minha alma vazia.”
Buenos Aires, Argentina
Setembro de 2021
Luna Valente
Hoje fazia exatamente três semanas desde que voltei para Buenos Aires, passei a primeira semana após o acidente no hospital em Londres, pois a médica que ficou responsável pelo meu caso lá, disse que era necessário para o meu tratamento. Falou que eu poderia sim voltar a enxergar, com o passar do tempo ou com a realização de uma cirurgia. Mas eu não queria criar esperanças, não queria me agarrar a isso para no final não acontecer, apesar das chances de eu retornar a ver serem grandes, ainda existia a porcentagem de eu ficar cega para sempre. E essa parcela acabava mais ainda comigo.
Desejava não receber visitas e já havia deixado isso bem claro, não queria que sentissem pena de mim ou qualquer coisa parecida. Também não queria jogar nas pessoas o fardo de conviver com uma pessoa... doente, que elas deixassem sua vida e seus sonhos por minha culpa. Não sentia vontade de conversar com ninguém, raras eram as vezes que eu saía do meu quarto e a última vez que eu saí de casa foi para ir ao consultório do médico que ficaria responsável pelo meu caso aqui na Argentina.
As únicas pessoas que eu tinha contato diariamente eram meus pais, meu avô e a Âmbar, e isso ocorria apenas por eles morarem na mesma casa que eu e insistirem bastante para isso. Todos os dias minha mãe vinha até o quarto com as minhas refeições, que aliás, não era mais um quartinho no local dos funcionários, meus pais e o senhor Alfredo insistiram dizendo que o melhor para mim era ter um lugar mais espaçoso e eu acabei cedendo porque não tinha forças para discutir nem contrariá-los. Sabia que o Simón tinha vindo visitar-me algumas vezes desde que eu cheguei a cidade, mas em todas elas eu disse que não queria ninguém ali e ele acabou aceitando isso, por mais que doesse eu tinha consciência de que aquilo era o melhor, para mim e para todos. Sobre a Âmbar, ela ainda estava em um relacionamento sério com o Simón e eu ficava muito feliz por eles, sempre que chegava da faculdade a loira vinha até o meu quarto e passava horas conversando comigo ou sozinha, já que eu falava poucas palavras e isso quando falava alguma coisa. Ela também me ajudava a escolher uma roupa para vestir e eu queria transmitir todo o sentimento de gratidão que existia dentro de mim à todos eles, mas eu simplesmente não conseguia e isso acabava comigo. Porque eu via como eles esforçavam-se para que eu ficasse bem e eu não retribuía nem um terço de tudo isso. Âmbar contava que o Rafael ligava e mandava mensagens todos os dias perguntando sobre mim, e disse que em breve viria fazer uma visita, acabei por não questionar, mas não me sentia confortável em saber que ele sairia do seu país apenas por preocupação comigo.
Matteo. Como eu havia imaginado, depois que eu fui embora de Londres não soube mais notícias dele, a única coisa que eu sabia era que tinha voltado para Oxford terminar a faculdade que já estava na reta final, isso quem me contou foi a Âmbar. Se você nesse momento estiver pensando que eu estou com raiva dele por ter ido embora comigo nessa situação, pode ir parando de pensar isso. Por mais que eu sinta uma breve tristeza por termos voltado a nos distanciar — o que eu sabia que aconteceria —, não sentia raiva, seria muito egoísta se sentisse. Matteo merecia viver a sua vida e tenho noção de que meus problemas não são dele, agradecia por ele ter seguido em frente, não sei se suportaria vê-lo deixando seus sonhos de lado para se preocupar comigo. E surpreendentemente eu não chorei por isso, nem me senti vazia.
Felipe tinha insistido muito para eu não desistir da patinação, dizia que eu conseguiria superar esse obstáculo e retornaria para as pistas. Mas não era isso que eu sentia, não tinha como seguir adiante depois do que aconteceu, eu havia desistido de tudo, do meu sonho. Na verdade eu não desisti, eu vi os meus sonhos desmoronando bem diante dos meus olhos enquanto eu não podia fazer nada, apenas aceitar, e por mais doloroso que fosse, foi o que eu fiz. As manchetes que saíam nos jornais e revistas eram perguntando o que havia acontecido com a grande patinadora Luna Valente, que em pouco tempo havia conquistado as pistas e a admiração de todo o público, mas que em menos tempo ainda viu isso se perdendo com uma queda.
Ninguém sabia realmente o que tinha acontecido comigo, eles apenas criavam milhares de teorias, mas nenhuma era concreta e eu preferia assim, não queria mais pessoas sentindo pena de mim, não queria o remorso de nenhuma delas.
A primeira semana depois que voltei para aqui foi torturante, eu só sabia chorar, chorar e chorar. Mas depois eu fui aprendendo a conviver com isso, e por mais que muitas vezes eu tenha mordido fortemente os lábios para segurar a vontade de me derramar em lágrimas, agora não precisava mais disso, eu simplesmente não sentia vontade. Não existia mais nada que me fizesse chorar, era como se tudo tivesse aos poucos se esvaindo e no final, era apenas eu e minha alma vazia.
Ouvi a porta do meu quarto abrindo em um rompante e passos saltitantes adentram o local, Âmbar. Por mais que eu não quisesse admitir eu gostava de tê-la ao meu lado nesse momento, para as pessoas que viram nossa relação anos atrás custava acreditar que hoje estamos tão unidas. Âmbar mudou muito nos últimos tempos e era notório, eu a havia perdoado por todo mal que ela um dia me causou, éramos quase irmãs, posso dizer assim.
— Tenho uma surpresa para você — disse eufórica e bateu palmas alegremente antes que eu sentisse o outro lado da cama, oposto onde eu estava, afundando.
— Se for algo sobre querer me tirar de casa, pode ir desistindo. — Levantei o meu corpo que estava deitado e sentei apoiando minhas costas na cabeceira.
Não estava sendo nada fácil, eu queria enxergar o que estava diante de mim e não poder fazer isso me deixava para baixo, esse era um dos motivos para eu não querer sair de casa, não suportaria ficar andando por aí sem saber onde realmente me encontrava.
— Eu já te disse que não faz bem você passar o dia todo presa aqui. — Respirei fundo tentando não aprofundar aquele assunto, era doloroso demais. — Mas a surpresa não tem a ver com isso. — Agradeci por ela mesma ter mudado o foco da conversa.
— E posso saber do que se trata? — tentei não soar animada e espero que tenha funcionado.
Eu sempre fazia de tudo para manter o meu rosto parado apenas para uma direção, porque sempre que eu virava para ver a expressão da pessoa a minha frente, acabava decepcionada por não enxergar e só piorava tudo. Na minha cabeça eu sempre tentava moldar as feições das pessoas de acordo com a entonação da sua voz, nem sempre funcionava, mas era uma boa forma de tentar esquecer minha atual situação.
— É uma surpresa bobinha, não posso te contar — ela falou com o tom de voz que dizia "não é óbvio?".
— Eu não gosto de ficar ansiosa e curiosa, Âmbar. — Suspirei e voltei a me deitar, senti a cama mexendo-se e deduzi que ela fez a mesma coisa.
— Eu prometo que você vai gostar.
Espero. Queria ter dito, mas apenas permaneci em silêncio e fechei os olhos, indo para uma dimensão onde eu não estivesse desolada e nem cega. Que eu fosse apenas a Luna Valente de anos atrás.
Acordei horas depois e o espaço antes ocupado por Âmbar estava vazio. Tateei a cama até chegar no criado mudo, onde peguei a minha medalhinha de sol e lua que estava lá em cima. Apertei-a entre minhas mãos contra o meu peito e fechei os olhos com força, na esperança de que quando abrisse novamente voltasse a enxergar. Nada, tudo não passava de manchas desconexas e escuras que eu não conseguia identificar.
Ouvi batidas na porta e levantei meu corpo assustada. Não fazia ideia de quem fosse, pois sempre que meus pais e Âmbar vinham aqui, eles falavam alguma coisa para que eu soubesse quem era. E outra, havia avisado que não queria receber nenhuma visita.
— Quem está aí? — perguntei um pouco alarmada.
— Oi menina delivery. — O que ele fazia ali? Sentia meu coração batendo fortemente contra o meu peito e eu ignorei aquilo. Matteo tossiu algumas vezes antes de voltar a falar: — Como você está? — “caso você não percebeu, estou cega, então sem dúvidas estou super bem”, minha consciência respondeu ironicamente, porém eu me controlei e não falei nada daquilo.
— Você não tem mais o direito de me chamar assim. — praguejei-me mentalmente por minha voz não ter saído na altura que eu queria, pelo menos consegui demonstrar irritação por saber da sua presença ali. — O que você quer aqui?
Minhas palavras foram frias e essa foi a intenção. Por mais que fogos de artifícios estivessem sendo estourados dentro do meu coração e milhares de borboleta fizessem festa no meu estômago. Eu não queria que ele estivesse ali e me visse nessa situação. O que ele veio fazer?
A quem eu queria enganar? Eu sentia uma alegria imensa por saber que ele estava ali por mim, mas simplesmente não podia. Não podia estragar sua vida, não queria jogar o peso de todas as minhas frustrações em cima dele. Eu era apenas isso, frustrações e angústia. Não poderia doar-me completamente a ele, porque eu não estava completa, estou pela metade e ele não é digno disso. O Matteo merecia mais do que eu podia oferecer. Porque eu via tudo que ele já fez por mim e que eu não consegui retribuir. Tudo bem que ele também fez muitas coisas erradas, mas quem não, certo?
— Eu disse que estaria ao seu lado sempre. — Engoli em seco com as suas palavras, então ele lembrava?
— Matteo, você quebrou essa promessa anos atrás — minha voz saiu mais magoada do que eu queria. Ouvi um suspiro vindo dele e senti o colchão abaixando, trouxe minhas pernas até que elas encostaram em meu peito e abracei meus joelhos, ficando o mais longe possível dele.
— Eu sei e sinto muito. — Senti tristeza em sua voz, mas tentei espantar esse sentimento. Não, não e não.
— Vai embora, por favor — minha voz saiu embargada por conta do choro entalado em minha garganta. Por que ele faz isso comigo? Por que ele resolveu voltar?
Seria muito mais fácil se ele não estivesse tão perto nem que o seu cheiro estivesse inebriando todos os meus sentidos. Eu claramente não gostava daquelas reações que o meu corpo tinha perante ele. Depois de dias, eu senti novamente vontade de chorar e tudo por causa dele, não queria sentir todas aquelas coisas, aquela necessidade que ele me fazia sentir.
— Eu não posso. — O quê? Claro que podia, ele deveria simplesmente levantar da minha cama e dar meia volta, sair de uma vez por todas da minha vida.
— SIM, VOCÊ PODE. — não queria gritar, mas eu estava desesperada. Minha respiração era falha e eu lutava para segurar as lágrimas.
— Eu não posso te ver assim e não fazer nada. — Sua mão foi em direção ao meu joelho e eu esquivei-me do seu toque, encolhendo-me contra a cabeceira da cama. — Durante essas semanas a Âmbar me falou que você estava mal, que não sentia vontade de comer e nem sequer saía desse quarto. Eu não aguento te ver assim, cadê aquela menina batalhadora que nunca deixou que nada a abatesse? A que lutava pelo que queria? A menina valente e corajosa? Cadê a minha menina delivery?
— Ela não existe mais, essa garota morreu naquela pista. — Essas palavras saíram como facas afiadas cortando minha garganta.
— Não é verdade, eu sei que essa garota ainda está viva dentro de você — falou firme e céus, como eu queria acreditar naquilo. — Luna, eu te vi cair e levantar um milhão de vezes, sei o quanto você lutou para chegar onde chegou e também sei o quanto você é capaz de dar a volta por cima e começar tudo outra vez, desistir nunca é uma opção. Quero que saiba que estarei sempre ao seu lado para qualquer coisa, mesmo você não querendo que eu esteja.
Nada disse, apenas balancei a cabeça mostrando que não concordava com o que ele dizia. Ninguém imaginava a minha vontade nesse momento de olhar para os seus olhos, de sentir todas aquelas vibrações que eles eram capazes de transmitir em mim. Mas não podia e eu não tinha forças para seguir em frente, estava esgotada de tudo. Já tive que ser forte muitas vezes durante toda a minha vida e agora eu simplesmente não conseguia ter energias e continuar.
— Matteo, só... Só vai embora — disse abaixando a cabeça.
Eu queria ficar sozinha com meus pensamentos e com ele ali não seria possível. Ele desestabilizava-me de uma forma inexplicável, o melhor era manter distância.
— Eu vou, mas pode ter a certeza que eu voltarei. — Suspirei. O colchão voltou a mexer e eu soube que ele havia levantado. Não disse mais nada, apenas ouvi quando a porta foi fechada, mostrando que ele tinha ido embora.
E por incrível que pareça eu não desabei, precisei controlar-me muito para não me perder em meio as lágrimas. Não queria chorar, pois não sabia se conseguiria parar depois, então respirei fundo diversas vezes e antes mesmo que tivesse chance de derramar alguma lágrima, eu adormeci.
E ele voltou, todos os dias durantes as duas últimas semanas, não queria que ele se prendesse a mim e a minha doença, mas eu já não tinha forças para mandá-lo ficar longe, eu desejava tê-lo ao meu lado e pouco a pouco ele derrubava a barreira que eu criei contra ele. Mas apesar dessa nossa sutil aproximação, eu não queria ficar me iludindo e criando mil planos, ele apenas me ajudava nessa situação difícil e ponto, nada mais. Não sabia o que o futuro nos reservava. Talvez nem sequer existisse um futuro entre nós dois.
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