Quando aconteceu pela primeira vez, eu tinha treze anos. Naquele dia, eu tinha ficado até tarde pra lavar as roupas do meu pai, eu fiquei com receio de voltar e acordar os Jung àquela hora, então eu dormi em casa. Devia ser madrugada quando senti uma mão alisar minha coxa. Abri os olhos, eu estava assustado, então sentei na cama e encarei meu pai.
Eu, inocentemente, me senti aliviado naquele momento. Era só o meu pai, eu não tinha nenhum motivo pra me preocupar, poderia apenas voltar a dormir.
Mas eu estava enganado.
Sua mão continuou alisando minha coxa, eu podia sentir o cheiro forte de álcool, ele me dava vontade de vomitar. Mesmo achando aquilo estranho, apenas afastei sua mão de mim.
– O senhor está bêbado, pai, é melhor ir pra sua cama.
– Não, Jin. – Ele apertou minha coxa com força e eu fiz careta. – Hoje, o papai quer dormir com você.
Eu era novo e ingênuo demais, eu ainda não conseguia entender o que meu pai queria dizer, mas eu fui obrigado a entender pouco depois.
Meu pai continuou me tocando, todas as noites em que chegava bêbado em casa, mas ele não ia muito além disso. Depois deu pedir pra que ele parasse e de afastá-lo, ele acabava indo embora. Por mais que aquilo tudo fosse ruim, eu sempre pensava que poderia ser pior. Eu estava confuso, ele era meu pai e aquilo não fazia sentido nenhum pra mim, e acima de tudo, eu estava com medo, muito, muito medo.
Eu pensei que aquilo tivesse sido apenas um “deslize” do meu pai, não aconteceria mais, estava tudo bem agora. Mas, depois daquela noite, ele passou a exigir que eu sempre fosse dormir em casa, isso permaneceu até meus 21 anos, até agora, eu tinha que voltar pra casa todas as noites, e quando eu não voltava, ele me batia.
Durante a minha adolescência, ele continuou me tocando, sempre que estava bêbado. Ele não fazia nada quando estava sóbrio, ou, às vezes, mesmo bêbado, ele apenas ia direto pra sua cama. Todas as noites, eu me encolhia na cama e pedia pra que meu pai não viesse até meu quarto.
“Por favor, não venha, não venha.”
Quando se passava algum tempo e ele não aparecia, eu me sentia mais aliviado do que tudo no mundo e pedia pra que todas as noites fossem assim, mas não era como acontecia, infelizmente.
Com o passar dos anos, as coisas pioraram cada vez mais, principalmente depois que fiz dezoito, que foi quando meu pai, de fato, começou a tentar ir ainda mais além comigo, e apesar de nunca reagir quando ele me batia, meu corpo o impediria de me abusar sexualmente mesmo contra minha vontade, pois eu não suportava aquilo. Se eu já me sentia desesperado por ele ““apenas’” me tocar, as coisas ficavam ainda piores quando ele tentava ter mais e mais.
Eu tinha muita vontade de contar aquilo a alguém, mas eu também tinha medo e vergonha. Se eu fizesse aquilo, com certeza, seria a Hoseok, mas sempre que eu cogitava a possibilidade, meu corpo travava, eu não conseguia contar a ninguém, era impossível.
E isso me marcou tanto que, em algum momento, eu simplesmente me acostumei com a ideia de que eu nunca contaria aquilo a ninguém, seria um segredo que levaria comigo pro túmulo. A vez em que estive mais perto de contar tudo foi pra Changkyun, quando ele me falou sobre os abusos que sofria na adolescência, porém, mais uma vez, meu corpo paralisou, minha voz não saía.
Por mais que ele tivesse passado por algo parecido, como eu poderia dizer que quem fazia aquilo comigo era o meu próprio pai? Eu não conseguia. Mas mesmo que eu não tenha contado, tenho certeza que Changkyun sempre desconfiou de tudo, principalmente quando fazia perguntas sobre o meu relacionamento com meu pai.
Havia algo em mim que queria, desesperadamente, acreditar que meu pai não era tão ruim assim, ele fazia aquilo porque estava bêbado, confuso, porque talvez não arrumasse nenhuma mulher que o quisesse, eu até mesmo pensei coisas como “se ele fosse tão ruim assim, já teria feito algo mais do que ‘apenas’ me tocar”. No fim das contas, eu continuava sendo ingênuo demais.
Sim, é claro que eu fiquei desnorteado ao ouvir meu pai contar aquilo a Namjoon, por diversos motivos. Ele gritou aquilo com várias pessoas por perto. Ele disse aquilo justamente pra única pessoa com quem eu mantive relações com o meu consentimento. Ele disse aquilo pra se exibir, como se fosse uma grande coisa pra se orgulhar.
E o pior de tudo, naquele momento, eu tive a certeza de que meu pai sempre esteve ciente do que fazia. Não é que ele bebesse e depois esquecesse do que tinha feito, ele lembrava de tudo, e por isso repetia. Não é que eu já não soubesse o quão repulsivo meu pai era, disso eu sempre soube, mas, naquele momento, eu estava com tanto ódio dele, e de mim também, pelo quão burro eu sempre fui, por todas as vezes em que tentei acreditar que havia bondade nele, quando isso apenas estava me destruindo mais ainda.
Eu não sei como pude ser tão ingênuo por tanto tempo, ou como quis tanto negar a verdade pra mim mesmo. Quando bati no peito do meu pai e disse aquelas coisas, eu estava falando sério, naquele instante, eu realmente desejava que ele apenas morresse, eu o odiava, apesar de ainda manter sentimentos imbecis por ele pelo simples fato de ser meu pai, eu o odiava mais que tudo.
Afinal, como não odiar alguém que arruinou sua vida?
Durante todo esse tempo, eu me senti indefeso e incapaz, mesmo depois de ter ficado maior que meu pai, porque é assim que pessoas abusadas se sentem. Se eu tivesse contado aquilo pra alguém – ou mesmo as pessoas que estavam na praça e ouviram aquilo –, certamente, diriam coisas como “por que não denunciou ele?”, “por que não fez nada?”, “você já é adulto, se não fez nada, é porque gostava”, “eu acho que você queria isso, no fim das contas”.
Saber que eu ouviria coisas do tipo era mais um motivo pra que eu me calasse, mas eu vou dizer algo a vocês. Ninguém pode julgar uma situação pela qual você não passou, não adianta vir com essa de “eu teria feito isso ou aquilo”, é fácil falar besteiras quando não se está, de fato, passando por aquilo. Quando se olha de fora, tudo parece mais fácil, mas não queiram sentir isso na pele, vocês iriam se arrepender e engolir todas as suas palavras.
E mesmo que você tenha passado por uma situação semelhante e tenha tido atitudes diferentes, não exija que as pessoas sejam como você, não exija que todos tenham a mesma força que você, porque não é assim que as coisas funcionam. Não tentem encontrar a culpa em quem é vítima, pois, acredite, essas vítimas já estão se sentindo suficientemente culpadas, mesmo que não devam.
Eu sempre estive me perguntando onde eu errei pra que isso acontecesse, eu sempre estive procurando minha culpa, fosse em uma coisa ou outra. Essa culpa também é o que nos silencia e, em alguns casos, nos faz acreditar que merecemos tudo que estamos passando, então fica mais e mais difícil sair daquilo.
Quando Changkyun me contou o que aconteceu com ele, quando me disse que gritou pra sua mãe que não contou nada porque sabia que ela não acreditaria nele, eu pude notar exatamente que tipo de sentimento ele teve. Eu pensava o mesmo, as pessoas não acreditariam em mim, elas colocariam a culpa em mim, e quando eu andasse pela rua, elas me veriam como o garoto que fazia coisas sujas com o próprio pai.
Se eu tivesse contado na primeira vez que aconteceu, teriam dito que eu era uma criança falando besteira, que um pai nunca faria aquilo com um filho. Se eu tivesse contado aquilo aos meus 21 anos, perguntariam o porquê de eu não ter contado antes, “por que aceitou por todos esses anos?”, “se você não gostava, deveria ter contato antes”. Eu sei que é assim que as pessoas são.
O mundo é doente.
Eu não contaria, não, nunca, não mesmo. Mesmo que as coisas dessem certo entre mim e Namjoon, mesmo que fôssemos morar juntos algum dia, mesmo depois que meu pai morresse, eu nunca contaria nada a ninguém. Eu preferiria viver carregando esse peso sozinho, fingindo que nunca aconteceu, superando sozinho os pesadelos que eu tinha toda noite.
Se eu pudesse fazer um apelo às pessoas, eu apenas pediria pra que não deixassem tudo tão mais difícil pra quem sofre qualquer tipo de abuso. Não importa se você não é o responsável direto pelo abuso, quando você julga, quando culpabiliza a vítima, quando romantiza um abuso ou trata como normal, quando fecha os olhos porque não é com você, eu sinto lhe informar, mas a culpa também é sua.
Você também é um abusador, você está ajudando a destruir a vida de diversas pessoas.
De qualquer forma, eu sentia que aquilo não fazia mais tanta diferença assim, logo mais pessoas saberiam daquilo. E a pessoa que me fazia sentir mais vergonha por saber, infelizmente, agora estava desacordado em uma cama de hospital.
Abraçado a Jiwoo, eu chorei tanto que senti que minha cabeça explodiria. Depois de um tempo, eu apenas sentei e fiquei totalmente sem reação nenhuma, era difícil ingerir tudo aquilo e organizar tantos pensamentos na minhas cabeça. Foi quando ouvi a mãe de Namjoon, ela estava totalmente desesperada e aquilo era mesmo o esperado, mas me deixou ainda pior.
Ela não parava de gritar, queria saber o que tinha acontecido com ele, quem tinha feito aquilo com seu filho, mas ninguém lhe respondia, ninguém dizia nada. Levantei de onde estava e fui até ela, me abaixando pra que pudesse encará-la melhor.
– Naeun, eu sinto muito, foi o meu pai que fez isso.
Imediatamente, senti um tapa arder em meu rosto. E eu não reclamei. Nos últimos meses, a mãe de Namjoon se desfez de um casamento, perdeu sua casa e todo o luxo que tinha, assim como o movimento de suas pernas, e então seu filho estava no hospital agora por minha causa. No lugar dela, eu também me bateria.
– Por que fez isso?! – Hyerin aumentou seu tom de voz. – Não é culpa do Jin, não desconte nele!
– Eu sei, eu sinto muito. – De fato, aquele foi apenas um pequeno surto seu, pois logo depois ela se encolheu em sua cadeira pra chorar ainda mais.
Hyerin parecia querer dizer algo mais, mas eu bati em seu braço e lhe lancei um olhar que dizia pra que ela não fizesse aquilo, então me afastei novamente pra que pudesse chorar afastado da mãe de Namjoon. Hoseok e Yoongi também estavam lá, mas eles apenas me olhavam sem dizer nada, afinal, eu sumi por tanto tempo, e foi exatamente assim que voltei.
Eu estava exausto. Fui até o banheiro, lavei meu rosto na vaga esperança de que aquilo me ajudasse a me acalmar, mas claro que foi em vão. Eu não sabia quando alguém sairia da sala de emergência e daria alguma notícia sobre Namjoon, como eu poderia me acalmar?
Quando voltei novamente ao corredor, Hyerin estava conversando com um policial, então me aproximei dos dois.
– O que foi, mãe?
– Nada, não se preocupe, querido.
– O que foi? – Perguntei ao policial dessa vez.
– Recebemos uma denúncia sobre o caso do rapaz que está na emergência.
– Foi o meu pai. – Respondi imediatamente, fazendo Hyerin ficar surpresa.
– Você presenciou?
– Sim.
– Então precisamos que você deponha.
– Tudo bem.
– Tem certeza, Jin? – Hyerin me encarou. – Você não está bem pra isso.
– Muito pelo contrário, vai ser melhor se eu fizer isso agora, mãe.
Pai, você pode me machucar, me quebrar e me despedaçar, mas se fez mal a alguém que eu amo, então vai ter que pagar por tudo.
Depois de discutir aquilo por algum tempo, ficou decidido que seriam Sunwoo e Jiwoo que me acompanhariam até a delegacia. Hyerin e Hoseok ficariam no hospital e me dariam notícias sobre Namjoon. Eu iria depor sozinho, do jeito que realmente desejava que fosse.
Eu não contei apenas o que meu pai fez com Namjoon, se eu estava ali, então eu contaria tudo.
– Ele já havia apresentado comportamento agressivo antes?
– Ele sempre foi agressivo.
Contei a vez em que ele me fez ficar em pé em cima de um formigueiro, quando ele quebrou móveis em mim, quando me estrangulou. Levantei de onde estava e tirei minha camisa, mostrei todas as marcas espalhadas pelo meu corpo e contei como e quando consegui cada uma delas.
– Seu pai fazia algo mais com você, além das agressões? – Eu entendi o que significava aquela pergunta, eles já deviam conhecer muitos casos parecidos.
– Sim. – Naquele ponto, eu não conseguia encará-los. – Ele abusou de mim.
– Quantas vezes?
– Não sei.
– Quantos anos você tinha na primeira vez?
– Treze. – Apertei meus joelhos. – Tenho 21 agora.
Os policiais me encararam sem dizer nada, não é como se estivessem surpresos. Tendo aquele emprego, deviam estar acostumados com histórias como aquelas, era mais como se estivessem com pena de mim.
– Você não o denunciou antes por medo? – Fiz um gesto positivo com a cabeça, enquanto enxugava minhas lágrimas. – Vamos ter que fazer alguns procedimentos pra comprovar isso, não é que não acreditamos em você, mas precisamos de provas pra prender ele, entende?
– Tudo bem.
– Nós também teríamos que entrar na sua casa.
– Tudo bem. – Repeti.
– A mulher lá fora é sua mãe?
– Sim.
– Ela mora com vocês?
– Não, ela foi embora quando eu tinha três anos. – Os policiais se entreolharam e eu não entendi muito bem o que estava acontecendo. – O que foi?
– Sabe que podemos prender ela por negligenciar você? Afinal, você era só uma criança.
– Não! – Respondi apressadamente. – Ela também foi espancada e abusada por ele!
– Tudo bem, vamos conversar com ela.
– Ela cuidou de mim, mesmo que não morássemos mais juntos. – Menti.
– Relaxe, nós acreditamos em você, apenas interpretei errado o que você disse.
– Ela não tem culpa.
– Obrigado pelo seu depoimento e por colaborar conosco. – Ele interrompeu a conversa.
– De nada. – Levantei apressadamente, eu só queria ir embora logo, queria notícias de Namjoon.
– Seokjin.
– Sim. – Virei pra encará-los.
– Sinto muito que tudo isso tenha acontecido com você.
Voltei ao hospital, eu não havia recebido nenhuma notícia de Namjoon. Eu só queria que aquele inferno acabasse de uma vez. Ele estava no hospital dos Min, mas o pai de Yoongi acabou saindo da sala de cirurgia porque não é bom trabalhar com o psicológico abalado, ele viu Namjoon crescer, era o melhor amigo de seu filho, e agora estava naquela situação.
A mãe de Yoongi sempre foi mais dura na queda, ao contrário do pai dele, ela fez questão de ficar. Yongsun também estava lá, a mãe de Jungkook, mas ela acabou saindo apressadamente da sala, parecia nervosa demais. Yoongi agarrou os ombros dela, fazendo-a ficar mais nervosa ainda.
– Como ele está?!
– Não posso falar agora. – Ela se soltou dele e voltou a caminhar.
– Me fala! – Ele também estava uma pilha.
– Yoongi, a situação dele é complicada, sua mãe está lá, está fazendo o melhor que pode, então se acalme, por favor!
Depois de finalmente conseguir se afastar, eu pude notar Yongsun enxugar suas lágrimas e apressar seus passos.
Se Namjoon não saísse vivo daquele lugar, a culpa seria toda minha. Eu teria que carregar aquilo pelo resto da vida.
Eu sempre tive sérios problemas em me adaptar, seja a algo ou a alguém. Coisas novas sempre me assustavam e me davam vontade de ficar trancado em meu quarto e não sair nunca mais. No meu quarto, tudo era somente eu. Um lugar onde eu não precisava encarar ninguém além de mim mesmo, e acreditem, já é difícil demais encarar somente a mim, eu diria que é insuportável, na verdade.
Se eu pudesse escolher algo no mundo que eu odeie mais do que tudo, esse algo seria eu mesmo. Qual era a minha utilidade no mundo, além de ser um estorvo na vida das pessoas? Não suporto a ideia de ser sempre um problema para os que estão a minha volta. Quando pensam em mim, devem se sentir apreensivos na mesma hora, mas não me evitam por educação ou pena. Seria melhor se me evitassem.
Quando encontrei a ideia do “Manual de como se suicidar”, eu ri daquilo, ri do quão patético era, mas depois de um tempo, notei que não conseguia mais me separar daquilo, notei que aquelas palavras escritas ali eram exatamente o que eu pensava das pessoas, do mundo, da vida e da morte. Então eu decidi, continuaria com aquilo, talvez aquele manual me fosse útil em algo.
Eu mudei demais. Não sei bem quando isso aconteceu, mas em algum ponto da minha vida, eu passei a odiar todos e simplesmente comecei a desistir. Sim, comecei, porque desistir é um longo processo. Perdi a vontade de tentar, pois sabia que não iria conseguir, que não iria valer a pena. Eu era fraco até mesmo para desistir, por isso eu apenas continuava desistindo aos poucos.
Em vários dias, eu queria que alguém pudesse me salvar, eu queria implorar para que alguém me salvasse, mas nem esse direito eu tinha, até isso havia perdido, eu não tinha o direito de me ajoelhar e pedir para que alguém no universo me salvasse, porque eu não merecia mais. Eu não tinha motivos para isso.
Eu estava cercado de pessoas que sempre falavam por mim. Me condenem, não tenham pena de mim, me apedrejem, eu mereço tudo isso, eu mereço essa dor, eu reclamo de coisas dos outros que não chegam nem perto dos meus pecados. Eu não mereço piedade, eu não mereço gentileza ou compreensão. Me tratem da pior forma possível, porque eu já não acho mais que eu mereça ser feliz.
Eu não me vejo como alguém que as pessoas devem manter proximidade, eu entendo o lado delas, eu sou um desajustado, uma pessoa no lugar errado. Às vezes, eu nem mesmo sei o que eu sou de fato, talvez nem possa me considerar um homem de verdade, eu nunca conseguiria ser tudo que eu queria para as outras pessoas.
Estive observando as pessoas por trás, estive olhando para suas costas por um longo tempo. Das costas largas até as mais estreitas, todos os tipos de costas. Observar as costas dos outros significa que eles estão sempre a sua frente. Eu me tornei um especialista em observar costas. Eu me tornei um especialista em estar sempre atrás dos outros.
Perdi tantas coisas na vida que não sou capaz de listar todas elas. Em todas as vezes em que eu estive tentando ganhar, eu estive perdendo. Até quando não tentei ganhar, eu perdi por nem mesmo tentar. Em suma, eu sou apenas um grande perdedor. Eu não sei que tipo de sensação a vitória poderia me proporcionar e, certamente, eu jamais vou saber.
Nos acostumamos a muitas coisas nesta vida, perder, com certeza, foi um dos meus maiores costumes. Eu parei de me esforçar, o meu melhor era o pior de mim, eu nunca conseguia um terço do que eu desejava. Em algum momento, eu comecei a fazer questão de perder. Eu sentia tanta raiva das minhas perdas, que decidi colecionar o maior número possível delas.
E o dia de hoje não é tão diferente assim dos outros, afinal, é assim que eu me sinto todos os dias.
Eu estive lendo aquele manual por tanto tempo, é realmente uma pena que o autor tenha desistido dele, talvez tenha encontrado uma vida melhor e conseguiu superar todas aquelas coisas sobre as quais escrevia, diferente de mim. De qualquer forma, talvez eu devesse agradecê-lo. Então, muito obrigado, Min Seung. O Manual foi realmente efetivo no que dizia respeito.
Se alguém estiver lendo isso, sei que vai estar me odiando, pois (1) vou ter feito uma grande besteira comigo mesmo e (2) eu menti.
Sim, eu menti.
Eu sinto muito.
Eu menti, pois não havia outra forma de vocês me amarem, porque ninguém gosta de garotos problemáticos, então eu decidi não ser um.
Acho que, até certo ponto, eu consegui enganá-los bem, certo? Vocês acharam que estava tudo bem comigo, mas era uma mentira, eu não estava bem. Nos últimos dias, apenas estive planejando esse momento.
Pai, mãe — e quem mais estiver lendo isso —, me desculpe por mentir. Eu não perdi minha memória, eu posso lembrar de tudo.
Mas quando acordei naquele hospital, eu ainda podia lembrar de cada palavra que Somin deixou naquela carta, eu achei que não poderia suportar nada daquilo, então eu menti, assim vocês não se preocupariam comigo.
Desculpe por ter enganado todos, mas eu posso lembrar de vocês.
Eu lembro de quando Taehyung levou Miri e Einstein pra brincarem com Leia, mas não deu muito certo, lembro de quando Hoseok estava em aula e Tae ia atrás de mim na faculdade e nós conversávamos sobre animes, foram dias realmente divertidos.
Lembro de quando Hoseok leu meu livro pela primeira vez e de como fiquei nervoso com o que ele diria, lembro de como ele deu as melhores dicas de como tornar meu livro ainda melhor. Os dias em que escrevemos juntos foram especiais e me salvaram dos momentos tristes. Se não fosse pedir demais, eu gostaria que aquele livro fosse terminado por ele.
E eu não poderia esquecer de quando Yoongi me disse que eu era Terra, e então me perguntou porque eu queria me tornar uma ilha. Naquele momento, eu não tive uma resposta, mesmo agora, ainda não tenho. Lembro dos dias em que bebemos juntos, lembro até mesmo de quando éramos crianças e eu acertei uma colher nele. A verdade é que, apesar de ser tão irritante, eu nunca consegui odiá-lo.
Lembro de todas as vezes em que Jin hyung me chamou de filhote loiro, de quando me abraçou, bagunçou meu cabelo e me fez rir, foram realmente muitas vezes. Como eu esqueceria da forma como ele sempre tentava alegrar a todos nós como se ele mesmo não tivesse problema nenhum? E eu sabia que ele tinha. Eu conheço um sorriso disfarçado, porque eu também tenho um, mas o de Jin hyung parecia carregar ainda mais coisas do que o meu.
E várias noites, eu lembro de Namjoon batendo na porta do meu quarto, tentando me fazer comer, lembro de quando ele levava Leia pra passear por mim, lembro de quando nos mudamos e eu ri de como ele cantava no banho, ele me viu rindo e continuou cantando pra que eu ficasse feliz com aquilo. Namjoon hyung foi o irmão mais velho que eu não tive, e você nunca pode esquecer de um bom irmão.
E sobre Jungkookie, bem, eu lembro basicamente de tudo. De quando nos beijamos pela primeira vez, de quando dormimos juntos, das vezes em que ele disse que me amava, de como ele reclamava sempre na fisioterapia, das coisas horríveis que eu lhe disse, de quando sentamos na praia, quando visitamos Busan, e falamos sobre o que sentíamos um pelo o outro.
Jungkook foi o garoto que eu mais amei neste mundo, e eu acho que ele nunca vai me perdoar pelo o que estou fazendo.
De repente, parece que todas essas lembranças estão escapando de mim, eles estão ficando cada vez mais e mais distantes, estão dando lugar a coisas que eu gostaria de esquecer.
Se esse é, provavelmente, meu último contato com o mundo, então eu preciso contar outra versão sobre a morte da minha irmã. Afinal, alguém além de mim precisa saber a verdade.
Naquele dia, eu estava em uma casa de jogos com Somin, papai e mamãe nos deixaram lá antes de irem pro trabalho. Estávamos felizes, ríamos sem parar, até que o namorado dela apareceu. Eu era infantil e ciumento, eu ainda sou. Naquele dia, eu discuti com minha irmã por estar dando mais atenção a ele do que a mim, então ela disse que devíamos voltar pra casa.
Eu gritei com ela, disse que ela podia ir, porque eu não iria. Seu namorado se ofereceu pra deixá-la em casa, eu estava irritado, eu não me importei.
De qualquer forma, não demorou pra que meu arrependimento batesse, então eu decidi voltar pra casa. Assim que abri a porta, eu ouvi o grito da minha irmã, então subi as escadas correndo, ela estava no quarto. Eu fiquei imóvel, não disse nada, não fiz nada.
Eu ouvi a voz do namorado dela, junto com seus gritos e seus pedidos de que ele parasse, eu sabia o que estava acontecendo. Somin havia me dito antes que não queria manter relações com ele, mas ele a pressionava mesmo assim. Naquele dia, ele pegou minha irmã, ele a trouxe de volta pra casa, não havia ninguém lá, então ele a estuprou.
Eu estava em choque, meu corpo não se movia, eu não podia parar de pensar no porquê de eu ter deixado que ela voltasse sozinha pra casa com ele. Conforme minha irmã pedia pra que ele parasse, eu chorava mais ainda do lado de fora. Então eu tentei abrir a porta, mas estava trancada.
Eu gritei, várias vezes, eu disse que ligaria pra polícia e pros meus pais, mas eu estava tão desesperado, eu só queria que ele deixasse minha irmã em paz. Quando fiz a ligação pra polícia, colocando no modo de alto falante pra mostrar que estava falando sério, a porta foi aberta rapidamente e ele bateu com tanta força na minha mão que meu celular caiu longe.
Enquanto me batia, ele disse que algum conhecido dele me mataria se eu abrisse minha boca. Depois de finalmente ir embora, Somin veio até mim e me abraçou, e enquanto chorava, ele me fez prometer que eu não contaria aquilo a ninguém.
Nos dias seguintes, eu passei a receber ameaças de um número desconhecido. Eu fiquei calado, do jeito que ele queria. Mas não foi o certo, eu sabia o que estava acontecendo, eu sabia que minha irmã estava sendo forçada a continuar com ele, e todas as noites, antes de dormir, eu a ouvia chorar.
Em sua carta, Somin contou que era abusada, mas não disse por quem, então agora eu estou dizendo quem é o culpado. Além disso, aquela era a confirmação que eu precisava, Somin se suicidou por minha causa, porque eu sabia de tudo, e eu não a ajudei, porque eu estava com muito medo.
Se eu tivesse contado, se tivesse pedido ajuda, Somin não teria feito aquilo, mas eu me silenciei e colaborei com tudo. Se eu causei isso, nada mais justo do que pagar da mesma forma pelo o que fiz.
Eu espero que Somin me perdoe, espero que vocês me perdoem, porque eu nunca consegui me perdoar.
Todas as vezes em que li o Manual, aquela mesma frase estava lá: “Até chegar ao final, um de nós dois não estará mais vivo”, e eu descobri que, de nós dois, seria eu, Park Jimin.
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