CAPÍTULO 14
O toque do meu celular me despertou. Com a boca entorpecida, agarrei-o de cima da cômoda e resmunguei:
— Alô.
— A que horas você vem? Pensei que tivéssemos combinado às dez.
Lutei para me sentar, olhando de relance para o relógio.
— Que horas são?
— Quase onze — Larry respondeu.
— Tá de brincadeira. — Arranquei o edredom e chutei os lençóis amarrotados procurando pelo chão. Nunca dormia até tão tarde. Eu havia sonhado… o Aphrodisium tinha implantado em mim uma ou duas sugestões subliminares. — Já vou estar aí. Só preciso me vestir.
Que dia era? Para que eu ia ver Larry?
— Esquece — Larry falou. Não soou nada feliz.
— Sério, eu vou estar aí em dez minutos. Nove.
— Aonde você foi a noite passada? Eu liguei e sua mãe disse que você tinha saído com a Faith. Como se eu pudesse acreditar nisso.
Uh-oh. A culpa cutucou minha consciência. Depois a raiva superou a culpa.
— Tenho que te dar um relatório de cada noite? Você vai ficar me controlando agora?
— Não. — Ele parou. Sua voz baixou. — Eu só quero saber onde você esteve, Piper.
Meu coração afundou no peito. Ele merecia saber? Sim. Em todo caso, qual era o problema? Nada havia acontecido.
— A Faith e eu fomos a uma apresentação de arte performática.
— Por quê?
— Nossa, não sei. Porque existe? — Eu precisava pedir permissão para ter uma vida agora? — Se você quer que eu vá até aí, preciso desligar.
— Tenho que ir para o trabalho em meia hora — ele disse. Soltou um longo e alto suspiro. — Arte performática, hein? Por que a Faith convidou você? Ela não podia chamar alguma das amigas trevosas para ir? Hã?
Ah, Larry. Fechei os olhos.
— Acho que não.
— Ligo pra você depois — ele disse. — Ou você pode ligar.
— Tudo bem, eu ligo. — Desligamos e fechei o celular.
Eu deveria tê-lo chamado para ir comigo na noite passada, já que ela mal registrou minha existência.
Isso não era verdade. Ela ter ficado contente por me ver não foi imaginação minha. Senti uma corrente elétrica passando entre nós, mesmo com Faith ali. Então, veio aquela Joanie e cortou o fio que nos ligava.
O celular acenou para mim. Eu o abri novamente e apertei os números. Os números que tinha memorizado. Tocou uma vez, duas vezes… Meu estômago deu um nó. Desliguei. Fiquei parada. Apertei o botão do redial. Tocou uma vez, duas… E quando eu estava prestes a desistir, uma voz disse:
— Sim, alô?
Desliguei. Era a voz de um cara. Caí de costas na cama, depois reabri o celular e apertei o redial de novo.
— Alô — ele respondeu.
— A Alex está? — Minha voz soou como a de uma garotinha assustada. Detesto isso.
— Um segundo. Alex! — Ele berrou. Houve um momento de silêncio, depois: — Alex, atende a porcaria do telefone. — Não havia como ser o pai dela; talvez o irmão? Ele voltou e disse: — Não. Não está aqui. Quer que eu peça pra ela te ligar?
— Não — falei apressada. — Outra hora eu falo com ela.
— Falou! — Ele disse e desligou. Meu coração estava esmurrando cada osso da minha caixa torácica. Eu queria tanto vê-la que chegava a doer.
Nadando. Para cima, para baixo, contando braçadas. Uma, duas, três, quatro. Inspira, expira. Tocando, retraindo, para baixo, para trás. Ela.
Tudo era ela. A luz, a sombra, o dia, a noite. Ela. Ela.
Ela era meu primeiro pensamento na manhã e meu último durante a noite. Ela havia se apoderado da minha alma. Estava dentro de mim, me consumindo, me compelindo a…
Quê?
Afogue isso. Lute contra a corrente. Você pode, Piper. Você é forte. Resista. Pode suplantar as forças da natureza. Você deve.
Nade. Lute. Conte. Conte.
Não posso. Não posso. Não posso.
Ela estava apoiada no meu armário, esperando, bebericando seu café. Quando me viu chegar, se pôs de pé e sorriu. Derreti. Hoje, ela estava com uma camiseta que dizia: TENHO UMA CONSCIÊNCIA QUEER. E VOCÊ?
— Oi — ela falou. — Obrigada por ter ido à minha apresentação.
Pega leve, Piper, meu cérebro avisou.
— Sem problemas. Me fale da Unidade. Como vocês se juntaram? — Estiquei o braço em volta dela para abrir o meu armário.
— Duas de nós nos encontramos no Departamento de Teatro da Washington Central. Eu tive a ideia e colocamos um cartaz no mural da Rainbow Alley. Por quê?
— Só estava imaginando. — Leve, bem leve. Peguei meus livros da manhã, tentando não sentir a respiração dela, o sangue dela pulsando nas minhas veias. — Então, por que você se transferiu da Washington Central? — Perguntei, fechando meu armário.
Ela não respondeu.
Abraçando os livros de encontro ao peito, comecei a andar pelo corredor e ela caminhou ao meu lado. Perto, perto demais. No cruzamento principal, paramos. Olhei para ela, minha pergunta ainda pairando no ar. Um grupo de garotas passou por nós, e eu nem teria notado se não fosse pelo fato de uma das garotas medir Alex de alto a baixo. Ela olhou a camiseta com uma careta de desprezo. Alex deu as costas para elas.
— Não era um ambiente saudável — ela finalmente respondeu.
Eu ironizei:
— E este aqui é melhor? — Achava difícil de acreditar.
Ela fitou o corredor na direção dos nossos armários, o olhar distante.
— Talvez — ela disse. — Estou esperando para descobrir.
Na aula de cálculo, tivemos um professor substituto que não sabia nem soletrar “matemática”, então ele nos deu uma hora de estudo livre. Eu podia tê-la usado para terminar de ler Grendel e começar a análise comparativa com Beowulf, que precisava ser entregue na semana seguinte. Ou ler o capítulo que discutimos hoje em economia, ou estudar para a prova oral de cálculo de amanhã. Em vez disso, puxei meu caderno de desenho. Os olhos dela eram tão bonitos e expressivos. Cor de musgo: profundos, verde-escuros, mas também castanhos no entorno. Cílios loiros. Os olhos eram difíceis de desenhar. Nem tanto pelo formato ou pela cor, mas pela profundidade. Pela pessoa por trás deles.
Ela era tão provocante, pensei, sorrindo. Será que era proposital? Como ela dissera, não gostava de fazer jogo. Poderia estar flertando? Comigo? Quem poderia saber? Todo esse conjunto — ela — era uma incerteza. Um mistério. Ainda assim, quando conversávamos, quando estávamos juntas, ela parecia tão familiar. Parecia saber quem eu era, de onde vinha. Acho que ela me conhecia melhor do que eu a mim mesma. Era fácil estar com ela.
E eu queria estar com ela, tipo, o tempo todo. Eliminar os obstáculos, as pessoas e as coisas em nossas vidas que estavam tentando nos manter afastadas: Brandi, Larry, Polly, a sociedade e eu.
Eu? Na verdade, o meu medo. O que eu temia exatamente? O que as outras pessoas pensariam? Acho que sim, um pouco. Mas não era isso que estava me impedindo de agir de acordo com meus sentimentos. Era a intensidade deles. Meu desejo por ela. Eu sabia que, se cedesse a ele, teria que me entregar completamente. Perderia todo o controle. Tudo o que eu conhecia, tudo o que eu era; as muralhas que construí para me proteger por todos esses anos viriam abaixo. Poderia me perder entre os escombros. Ainda assim, ela fazia com que me sentisse mais viva do que nunca. Passarinhos azuis, borboletas no estômago e fogos de artifício.
Mackel devolveu alguns trabalhos da semana anterior. Acima do meu desenho de uma metade de rosto, ele colou um bilhete: “Inacreditável p/ kct. Nota A+”. Devo ter irradiado calor, porque Alex virou para trás e sorriu. Brandi surrupiou a atenção dela mostrando seu próprio desenho e dando uma risadinha, e fiquei imaginando se era possível apontar tão bem um lápis até deixá-lo afiado o bastante para furar um crânio.
Ah, que ideia saudável, Piper, pensei. Considerar um assassinato, por que não? Talvez, você pudesse contratar um assassino de aluguel para tirar todas as pessoas indesejáveis do seu caminho.
Tudo bem, propus um contrato mental a mim mesma: se a Alex vier falar comigo depois da aula, deixo a Brandi viver.
Ela ficou, ali, parada, com cara de quem faria isso, de quem queria fazer isso. E então Brandi estava de novo em cima dela. Em todo caso, onde encontrar um assassino de aluguel? No Disque Morte 0800?
Depois da aula, encontrei uma rosa amarela enfiada na ventilação do meu armário. Minha alma murchou. Larry. Ele sempre me dava rosas depois que brigávamos. Mas nós brigamos? Ele sabia que amarelo era minha cor favorita. Amarelo. Engraçado. Eu tinha conseguido evitar o Larry ao longo do dia, mas não poderia fazer isso para sempre.
O que eu faria com ele? Contar a verdade, é claro. Seria traição permitir que nosso relacionamento continuasse assim. Agora, eu percebia que só o amava como um amigo. Que o lado físico de nosso relacionamento só evoluiu porque era isso que esperavam de nós. Uma garota encontra um cara, eles se apaixonam, transam e se casam, não necessariamente nessa ordem.
As expectativas. Elas mandavam na minha vida.
Corte o final. Revise o roteiro. O cara dos sonhos dela é uma garota.
Eu estava cheirando a rosa e pensando em como decepcionar Larry da forma mais indolor. Quando cheguei ao meu jipe, Alex estava encostada no capô, braços cruzados, um pé dando batidinhas no chão.
— Piper. — Ela se impulsionou do para-choque. — Você pode me dar uma carona?
Um raio me atravessou. Será que ela sempre me deixaria assim, excitada?
— Claro. — Sorri para ela. Segui o olhar dela até o asfalto, o pneu furado do lado do motorista do seu carro Neon. — Essa não — falei. — Odeio quando isso acontece. Quer que eu te ajude a trocar o pneu?
— Estou sem estepe — ela falou, e sua a voz soou fria. — Só preciso de uma carona, tudo bem?
— Tudo bem, claro. — Abri a porta do passageiro e ela entrou. Corri para o lado do motorista. — Quer que eu deixe você no posto de gasolina ou algo assim? — Pousei a rosa amarela sobre o painel. — Tem uma borracharia não muito longe daqui.
— Não, eu vou ligar pro meu pai depois. Se você puder me levar até o Hott ’N Tott, já está ótimo.
Virei a chave da ignição. O motor tossiu.
— Ah, droga. Preciso de gasolina. Vou ter que passar em casa pra pegar um pouco de dinheiro. Isso vai te atrasar?
— Não. Sua casa é caminho. — Alex afivelou o cinto de segurança. — Depois pago a diferença.
— Nem precisa. Tenho que abastecer o tanque de qualquer forma. — Como ela sabia onde eu morava?
Ela perguntou:
— E eu vou atrasar você?
— Vai. — Não fazia sentido tentar mentir para ela. — Mas não tem problema. — Dei a ré, saindo da vaga. — Vou ligar e avisar que estou doente. — O quê? Essas palavras tinham mesmo acabado de sair da boca de Piper Jaeger? Ela nunca havia faltado no trabalho. Esperava-se que estivesse lá, e com pontualidade. Ela era escrava das expectativas.
Enquanto saíamos do estacionamento, Alex comentou:
— Não fazia ideia de que você e a Faith eram da mesma família. Ela é muito legal.
Apenas olhei para ela.
Alex riu.
— Você é tão fácil de ler.
Isso fez todo o sangue subir ao meu rosto.
— Ela é sua meia-irmã, né? É filha da sua mãe ou do seu pai?
— Pai — falei. — Padrasto. Minha mãe ficou grávida de mim quando estava no ensino médio, ela tinha quinze anos. Ela não me queria. — Prendi a respiração. Por que contei isso a Alex? Nunca havia contado a ninguém, nem mesmo para a Lorna.
Alex franziu a testa.
— Ela disse isso pra você?
— Não com todas as palavras. — Minha voz soou fraca, assim como eu me sentia. — Os pais dela a expulsaram de casa, então ela não teve escolha.
Os olhos de Alex se arregalaram.
— Uau. O que eles eram? Fanáticos religiosos?
— Não sei — admiti. — Ela nunca me contou o motivo. Ela não fala com eles desde então. Acho que a mãe escreveu para ela ao longo dos anos, tentando uma reconciliação, tentando se envolver com a minha criação. Mas Mamãe se recusa terminantemente a ter qualquer contato com eles.
— E como você se sente a respeito disso? — Alex perguntou.
— Eu? — Olhei para ela. E de volta para a estrada. Todos esses anos. — Esperava que ela conseguisse perdoá-los. Ou que me deixasse conhecê-los. Quero dizer, são meus avós, sabe?
Alex meneou a cabeça de modo compreensivo. Senti os olhos dela sobre mim, me estudando. O que será que ela via? Uma pilha de nervos à flor da pele? Depois de um tempo, ela disse:
— Sempre há uma escolha. Sua mãe não deu você para adoção, então ela realmente queria ficar com você.
Eu nunca havia pensado sobre isso. Por que será que não pensei? Sempre achei que tudo o que ela queria ter feito era um aborto. Fim do problema. Meu fim.
— Onde está seu pai? — Alex perguntou.
— Quem é que sabe? Mamãe disse que ele acabou sendo um babaca e, graças a Deus, eles nunca se casaram. Ele nem quis me conhecer. E o meu padrasto, Neal? Ele é um cara legal. É o primeiro homem realmente bom que a Mamãe encontrou. Ele a faz feliz. Isso é o que conta. Infelizmente, ele trouxe também a bagagem.
Alex me disparou um olhar maldoso.
— Sinto muito, mas esse lance de ser gótica me dá vontade de gritar.
— Por quê? — Ela se virou para me encarar.
— É um negócio doentio! — Dei um sorrisinho contrariado.
— É claro que não. — Ela apoiou um braço no encosto do meu banco. Não tocou meu ombro por um centímetro. — A maioria dos góticos que eu conheço são gente boa. Acho que o movimento só ganhou má reputação por causa do massacre de Columbine. O que eu entendo que eles querem é não violência, paz, celebrar a vida. E celebrar a morte também. Eles tentam encontrar beleza em tudo. Mesmo na dor. Para alguns, é como uma busca pela imortalidade. Pelo nirvana.
Mirei a estrada a minha frente, processando as palavras dela. Castigando a mim mesma por nunca ter parado para conversar sobre isso com a Faith, nunca ter perguntado o que o gótico significava para ela.
Alex deixou cair o braço.
— Acho que ela só quer ser notada. Sinto muito pela Faith ter que competir com você.
Minha cabeça virou de supetão.
— O que você quer dizer com isso? Nós não estamos competindo.
— Ah, vamos. — Ela se virou para mim de novo, enfiando uma perna debaixo da outra, o joelho quase resvalando no meu, a mão descansando sobre a coxa. — De repente, ela cai de paraquedas nessa família. Tem que dividir o pai dela. — Precisei reunir cada grama da minha força de vontade para me concentrar em dirigir, e também no que ela dizia, e não olhar para a coxa dela. — Ela tem essa nova irmã que é linda, e inteligente, e atlética, e popular. Como ela deveria se sentir?
Meu rosto se acendeu. Ela acha que sou linda?
— Nós não estamos competindo — repeti.
— Você pode não estar. — Alex desviou o rosto. — Você nunca precisou.
Em vez de estacionar na entrada para carros, encostei na calçada e puxei o freio de mão. Apenas fiquei parada ali, fitando Alex. Ela havia me enxergado por dentro, eu sentia como se tivesse acabado de fazer uma autópsia.
Saí do jipe e Alex me seguiu.
Mamãe estava na sala de estar, assistindo as suas novelas e dando mamadeira para Hannah.
— Oi, mãe — eu a cumprimentei. — Esta é a Alex. Alex, minha mãe.
— Oi — Alex esticou a mão.
Como estava com ambas as mãos ocupadas, tudo o que Mamãe pôde fazer foi sorrir.
— Olá.
— E esta é a Hannah, minha irmãzinha. — Fiz cócegas na barriga da Hannah e ela gorgolejou. Mamãe, pelo que notei, estava avaliando Alex, lendo a camiseta dela. — Pode me pegar uma toalha, Piper? Esta aqui já está molhada.
— Claro.
Levei minhas coisas até a cozinha e as descarreguei ao lado da escada. Quando voltei, Alex estava sentada no sofá ao lado da Mamãe.
— Não, eu me transferi para a Southglenn neste semestre — ela falou. — Quanto tempo a Hannah tem? — Alex fez cócegas no pezinho dela.
Mamãe se levantou.
— Você não deveria estar no trabalho? — Ela disse para mim, arrancando a toalha da minha mão.
— Tirei um dia de folga — menti. — Vamos, Alex. Vou te mostrar a cripta.
Alex se levantou e me acompanhou até o porão. Enquanto eu pegava a chave debaixo do abajur e abria o meu cofre — que eu havia comprado como medida de precaução contra Faith e agora me sentia terrivelmente arrependida disso —, Alex passeou pelo meu quarto, mexendo nas minhas coisas. Pare de mexer, pensei.
Ela pegou o CD das Dixie Chicks e sorriu para mim. Sorri também. Colocando vinte dólares no bolso, falei:
— Certo. Estou pronta.
— Para quê? — Ela arqueou a sobrancelha.
Eu balancei a cabeça.
— Como você é má.
— Você não imagina o quanto.
— Por que não você me mostra?
— Por que você não me mostra?
Um riso nervoso tropeçou nos meus lábios.
— Está dando em cima de mim?
O rosto dela ficou rígido, e ela disse de um jeito frio:
— Nem toquei em você.
Isso era verdade, ela não havia tocado em mim — fisicamente, quero dizer. Aliás, parece que havia feito um grande esforço para não me tocar. A eletricidade entre nós era palpável. Quase visível. E perigosa.
— Vamos. — Respirei, saindo dali. Nem sequer me lembro de ter dirigido até o trabalho dela, onde a deixei, e depois voltado para casa. Ela não me tocou. Mas, meu Deus, como eu queria que ela fizesse isso.
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