CAPÍTULO 17
Aproximei-me de fininho atrás da Alex na fila do almoço e cobri os olhos dela com as mãos.
— Faz tempo que não te vejo — murmurei junto do cabelo dela. Ela girou nos calcanhares. Os outros na fila se viraram para nos olhar. Os olhos da Brandi se arregalaram.
— Procurei por você a manhã inteira — eu disse a Alex. — Senti sua falta no corredor dos armários.
— Hã, com licença. — Alex sorriu para os amigos e veio para o meu lado, tomando cuidado para não me tocar. Por quê? Por cima do ombro, ela acrescentou: — Preciso tirar uma dúvida de Matemática com a Piper. Divirtam-se. — E virou o punho diante deles. — Sei que vai ser difícil.
Levando-me para fora da cafeteria e debandando pelo corredor, até o canto ao lado do bebedouro, ela sussurrou com urgência:
— O que você está fazendo?
— Hã, fingindo que amo você? — Estiquei a mão para afastar uma mecha de cabelo da boca dela.
Ela se afastou. O olhar dela vasculhou os arredores.
Meu estômago se retraiu. Que olhar era esse? Nojo? Horror?
Meu Deus, tinha terminado? O fim de semana tinha sido só uma miragem? Uma brincadeira?
Ela deve ter visto minha palidez, porque falou:
— Ah, Piper, não. Não é isso. — Ela apertou rapidamente minha mão. — A gente só… — Os olhos dela espreitaram o lugar de novo. — A gente precisa pegar leve aqui. Na escola. Entende o que quero dizer?
— Não. Não entendo o que quer dizer. Achei que você fosse assumida e com orgulho.
— Eu sou. Mas você, não.
— Eu quero ser. Quero gritar do alto da montanha: eu amo a Alex Vause!
— Droga. — Ela tapou minha boca com a mão. — Vamos conversar sobre isso depois, tudo bem? Por enquanto, pega leve.
A mágoa deve ter transparecido no meu rosto.
— Piper, eu amo você — ela disse suavemente, acariciando meu rosto. — Só não quero que isso te machuque.
Machucar? Como poderia o amor machucar?
Ela beliscou minha bochecha e se afastou, deixando-me ali, em suspenso. Saudosa, no vácuo.
Ela se sentou com a Brandi na aula de artes, nem sequer tentou me passar um bilhete ou olhar para trás. Brandi olhou por cima do ombro uma vez, meio que me estudando, mas Alex disse algo no ouvido dela que fez as duas rirem.
Fez com que me sentisse o alvo da piada.
Não entendi. Será que esse era um mundo novo com regras sociais completamente diferentes? Se sim, esperava que ela me desse umas dicas.
Elas saíram da aula juntas, Alex e Brandi. Como um cachorrinho abandonado, caminhei como uma sombra atrás delas. Se Brandi tocar no braço dela mais uma vez, fervilhei, ela vai beijar o chão. Na escada, elas se separaram, Brandi prosseguindo na ala das artes e Alex subindo os degraus. A meio caminho, Alex virou a cabeça para encontrar meus olhos e sorrir. Eu não sorri em resposta.
— Espero que esteja planejando fazer mais cursos de artes na universidade.
Dei um salto. Mackel havia se aproximado e estava agora ao meu lado.
— O quê? — Rebobinei a fita na minha cabeça. — Eu… não pensei nisso.
Não havia pensado em nada, a não ser nela.
— Você tem um dom — ele falou. — É raro e você não deve desperdiçá-lo.
As palavras se embolaram na minha semiconsciência. Um dom raro.
— Obrigada — falei automaticamente.
— Queria ter a sua visão. Ah, como eu queria ter a sua visão. — Ele suspirou e marchou pelas escadas.
Minha visão? Nesse momento, eu estava praticamente cega.
Alex me ligou enquanto eu dirigia para o trabalho.
— Você consegue dar uma escapada depois? — Ela perguntou.
O som da voz dela me deixou exultante.
— Sim, claro — falei.
— Vou trabalhar até as onze, mas você pode me ligar na loja ou a gente podia se ver depois? Ir a algum lugar conversar?
— Depois — decidi. — Pego você no Hott ’N Tott.
— Do lado de fora, nos fundos — ela falou. — No beco.
— Tudo bem. — Será que ela estava envergonhada de ser vista comigo em público? Era isso? Aparentemente, “com orgulho” não necessariamente acompanhava “assumida”.
Cheguei em casa depois do trabalho para encontrar Neal na cozinha, dando tapinhas nas costas da Hannah enquanto ela chorava.
— Sua mãe saiu para pegar seus remédios. — Ele precisou gritar para ser ouvido. — Os dentes dela estão nascendo.
Deixei cair minha mochila e fui até ela.
— Aqui, deixe eu tentar. — Neal transferiu o bebê para os meus braços. — Já passou, maninha. — Balancei-a devagarinho. — Está tudo bem. — Enfiei um dedo na boca dela e massageei as gengivas. O choro se reduziu a alguns soluços. Não me pergunte como eu sabia fazer isso. Instinto maternal?
— Obrigado, obrigado, obrigado. — Neal juntou as mãos em agradecimento.
Carreguei Hannah para o porão, onde Faith estava plugada em seu death rock. Ela me viu e apagou uma haste fumegante de incenso.
E daí? O mundo inteiro podia estar em chamas desde que Alex emergisse da fumaça. Acomodei Hannah na minha cama, depois troquei de roupa e resgatei o pacote de bolinho recheado que a sra. Ruiz havia colocado no meu bolso no Chalé das Crianças. Descarreguei meus livros na cama para começar os estudos. No momento em que eu estava terminando o último problema de integrais definidas, Mamãe apareceu. Ela entrou nas pontas dos pés levando um dedo aos lábios.
— Hã? Oh. — Eu não percebi que Hannah havia dormido na dobra do meu braço. Ela encaixava-se tão naturalmente ali.
— Larry apareceu aqui mais cedo — Mamãe sussurrou, levantando Hannah.
Abaixei meu livro de cálculo.
— O que ele queria?
— Ver você, eu imagino.
Hã. Eu não tinha visto Larry o dia todo. Ele obviamente estava me evitando do mesmo modo que eu a ele.
— Faith, você poderia, por favor, não acender velas aqui dentro? — Ouvi Mamãe dizer. — Foi difícil arrancar a cera de cima da sua cômoda hoje de manhã.
Faith soprou a vela, audivelmente. Enquanto Mamãe saía, Faith disse:
— Enquanto você estava aqui, chegou a ver minha cobra? Eu não consigo encontrá-la.
— Sua o quê?!
Ah, Mamãe. Balancei a cabeça. Ela deve ter percebido, ou então desejado, que Faith estivesse de brincadeira, porque suspirou e saiu pisando firme escada acima.
— Ponto — falei por cima da divisória.
Visualizei a careta de desdém de Faith. Então ela disse:
— Você viu minha cobra? Ela é bebê, tem só uns sessenta centímetros. Verde.
Ela estava brincando, não estava?
— Sim, eu vi ela serpentear debaixo das suas cobertas e deixar um presentinho — falei.
Faith bufou.
Arrastei-me para baixo das minhas cobertas. Tudo o que queria era fechar os olhos e recapitular a noite de sábado. O beijo.
Meu telefone me assustou.
— Oi — Alex falou. — Você vem?
Ah, meu Deus. Eu havia dormido. Pisquei e olhei para o meu relógio. Já eram onze e vinte.
— Logo estarei aí. Desculpa. Vai demorar uma meia hora.
— Eu espero — ela falou. — Mas se apresse.
Ela estava encolhida na porta da loja, a lâmpada halógena projetando raios irregulares sobre o rosto dela.
— Desculpa — nós duas dissemos juntas enquanto ela entrava no jipe e trancava a porta. Isso nos fez rir um riso nervoso.
— Do que você está se desculpando? — Ela perguntou.
— Porque atrasei. Eu não esqueci. Eu dormi.
Ela se inclinou por cima do banco e me beijou. Eu a beijei também. Não queria soltá-la.
— Tem um café vinte e quatro horas no final da rua — Alex falou. — Podemos conversar lá.
Eu a soltei, relutante.
— E por que você se desculpou? — Perguntei, engrenando a marcha a ré e fazendo o caminho reverso no beco.
— Por hoje — ela respondeu. — Não consigo acreditar que tratei você daquele jeito. — Ela alcançou minha mão no meu colo e a segurou. — Me perdoa?
— Claro. — Como não perdoaria?
— Isso vai ser difícil na escola. Vire à esquerda, aqui.
Segui as coordenadas dela até o café, o Blue Onion. Ao chegarmos, desliguei o motor e ficamos ali, no estacionamento. Me detive segurando a mão dela sobre minha perna, sentindo o calor dela irradiar através de mim. Ela levantou minha mão e beijou os nós dos dedos.
— Vem. Vamos conversar. — A porta dela rangeu, abrindo-se.
Apenas uma mesa estava ocupada. Três mulheres com uniformes hospitalares, que pareciam ter acabado de chegar do trabalho, estavam tomando o café da manhã. Alex perguntou à garçonete se poderíamos ocupar uma cabine nos fundos, e nos sentamos de frente uma para a outra. Ela colocou os cotovelos sobre a mesa e esticou as mãos. Entrelacei meus dedos nos dela. Adorava as mãos dela. Tão fortes e macias. Adorava todos aqueles anéis.
— O que vocês vão querer, garotas? — A garçonete perguntou.
— Café preto — Alex respondeu, sem desviar os olhos dos meus. — Acho melhor fazer o descafeinado.
— E o meu vai ser chocolate quente. — Sorri para a garçonete.
— Já trago.
Ela saiu e Alex falou:
— Amo você.
— Mesmo? — Depois de hoje eu não tinha tanta certeza.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Não, eu só levanto todo dia na porra da madrugada pra fingir que estamos tomando café da manhã juntas em frente aos nossos armários. Eu nem sequer tenho aula às sete, desisti no primeiro dia.
— O quê!
— Depois eu tenho que arrastar minha bunda por três lances de escada pra passar por você no corredor entre o terceiro e o quarto períodos. E eu fico parada na frente do banheiro do estúdio de arte pra ver você passar no corredor. Chego atrasada à aula de matemática todo dia. Eu amo o jeito como você se move, aliás. — Ela me olhou de cima a baixo. Depois os olhos dela ficaram mais sombrios e ela acrescentou: — Tentei subornar aquele idiota do Winslow pra mudar de lugar comigo, mas ele é muito a fim de você.
— Você subornou o Winslow? — Deixei escapar uma risada. — Com quanto?
Ela bufou.
— Vinte paus. Eu disse que, se não fosse o bastante, eu fazia sexo com ele. Mas mesmo assim ele não quis sair do lugar.
Caí na gargalhada. Ela soltou nossas mãos para contar nos dedos:
— Vejamos. Eu vou até o Chalé das Crianças depois da aula pra ver se você ainda está lá, se consigo ver você na janela. Passo diante da sua casa quando vou pra escola. Às vezes, da biblioteca, eu vejo você e os outros saírem para o almoço. Umas duas vezes eu até segui você pra descobrir o que você gosta de comer. Só pra saber, se alguma vez, se alguma vez, eu fosse sair com você… — Ela parou e desviou o olhar para longe. — Mas era duro demais ver você com ele.
— Tudo bem, para. — Eu tinha um nó na garganta do tamanho de um abacaxi.
Por sorte a garçonete trouxe nossas bebidas, então tive alguns instantes para me recompor. Meu Deus, ela se sentia do mesmo jeito que eu. Total e descaradamente apaixonada. Levantamos nossos copos em sincronia e estudamos uma à outra. Alex abaixou o copo dela primeiro.
— Não podemos ficar juntas na escola, Piper. Nem em qualquer lugar onde as pessoas nos conheçam. Conheçam você.
Soprei a xícara de chocolate quente e franzi a testa.
— Por quê?
— Porque não quero que você passe por toda aquela merda.
— Mas…
Ela levantou a mão.
— Você não sabe como é. O que aconteceu nos armários foi um incidente menor. Tudo bem, se qualifica como um crime de ódio, mas não custou nada. Não como os pneus furados.
Meu queixo caiu.
— Alguém furou seus pneus? Quem? Foi isso que aconteceu no estacionamento da escola?
— Na escola. No shopping. Em vários lugares. Esse tipo de coisa dá pra consertar. São as outras coisas, quando cochicham às suas costas, riem na sua cara, como se você não tivesse sentimentos. Quer saber quantas vezes sou chamada de “sapatão” todo dia? Vixe, eu não sei. — Ela inclinou a cabeça. — Perdi a conta. Mas os piores são os que te dão aquele olhar, sabe… — E balançou a cabeça. — Existe ódio demais nas pessoas. Isso me assusta, ok? Tenho muito medo de agressão física. Aquele dia na máquina de refresco? Meu Deus, aquilo me traumatizou. Isso não significa que eu vou deixar o medo me controlar, ou que eu vá ter medo de ser quem eu sou. Tenho orgulho de ser gay. Mas levei muito tempo pra conseguir chegar até aqui. E eu tenho que enfrentar um monte de merda. E não consigo suportar a ideia de que você vai passar por isso, por qualquer uma dessas coisas. — A voz dela sumiu de repente.
Estiquei a mão e acariciei um anel no dedo indicador. Prata, gravado com um padrão em ziguezague.
— Eu aguento, Alex.
— Bem, eu não — ela retrucou. — Olha. — Virou as mãos e segurou as minhas entre as suas. — Você tem só mais dois meses antes de se formar, certo? Depois vai pra longe de todo mundo que você conhece. Não que a sociedade seja muito melhor, mas é mais fácil ignorar as pessoas quando elas são estranhas. Além disso… — Ela correu os polegares pelos meus. — Não acho que você entenda todas as consequências da sua decisão.
— Não foi uma decisão. Eu sou assim.
— Que seja. Você ainda não aceitou o que significa ser lésbica.
Lésbica? Era isso o que eu era? Ainda não havia pensado sobre uma nova identidade. Um rótulo. Tudo o que eu sabia era: eu a amava.
Ela sondou meu rosto, meus olhos.
— Tem muita coisa que você precisa processar, Piper. Confie em mim. A verdade vai desabar sobre você.
Desabar sobre mim. Imaginei me tornar o alvo de todos aqueles psicopatas, senti a verdade do conhecimento e da experiência dela se infiltrar em mim. Alex e eu ficamos respirando fundo e expirando. Ela recolheu as mãos e, com o dedo indicador, circulou a borda do copo.
— Detesto dizer isso, mas, se você se assumir agora, em público, imagine o que vai acontecer com o Larry.
Larry. Como eu podia ser tão insensível? As pessoas seriam cruéis. A família dele, os amigos. Coop.
— Você tem razão. — Meneei a cabeça. — Está certa. — Recostei-me no banco e cruzei os braços. Ele não merecia isso. Meu amor por ela não tinha nada a ver com ele.
— Promete que não vai contar pra ninguém? — Alex falou. — Não agora, pelo menos?
Olhei nos olhos dela… seus olhos preocupados, em pânico. Entendi completamente o ímpeto dela em me proteger. Eu nunca, jamais queria vê-la magoada novamente.
— Prometo.
— Bom. — Ela suspirou aliviada. Levantando a xícara, fez menção de beber e sorriu para mim. — Até lá — falou —, enquanto o momento não chega, você é meu segredo.
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