CAPÍTULO 23
Mergulhei na extremidade mais funda, deixando-me afundar na água.
Livre-se. Coloque para fora. Faça ir embora.
O esconderijo, o segredo, isso estava me rasgando ao meio. Por que tinha que ser assim? Por quê?
Meus pulmões estavam prontos para explodir enquanto tomava impulso e irrompia pela superfície. Depois nadava, voltas e mais voltas, tentando soltar, expurgar, libertar. Libertar-me.
Estavam errados quando chamavam isso de “estar no armário”. Era uma prisão. Confinamento em solitária. Eu estava trancada do lado de dentro, dentro de mim, no escuro, com medo e sozinha.
Enquanto me arrastava pelos degraus da Taggert House, encontrei Alex encolhida diante da minha porta, com um pote de tupperware equilibrado sobre os joelhos. Ela se ergueu e sorriu:
— A especialidade da Kate. — Ela esticou o pote para mim. — Canja para aquecer o espírito.
Eu não acreditava que essa sopa pudesse salvar a minha alma devastada. Alex pendurou a mochila no ombro e me seguiu para dentro. Deixei minhas coisas caírem no chão e coloquei o pote com a sopa no micro-ondas. Ela deve ter previsto minha implosão iminente, porque não perguntou.
A sopa era reconfortante, ou talvez fosse a paz que eu encontrava em Alex. Comemos direto do pote, na mesa velha. O último macarrão foi sugado em dupla e beijado no fim. Alex lavou o pote e os talheres, depois resgatou a sua pasta de vida independente — aquela disciplina inútil que eu devia ter escolhido —, chutou os sapatos para longe e espalhou a lição de casa sobre a cama.
Agora, o silêncio dela me afligia. Levantei e fui em direção ao guarda-roupa.
— Conhece alguém que precise de um vestido de formatura? — Puxei um dos sacos de lixo encostados no canto. No fundo, estava o vestido que Mamãe havia encomendado de um catálogo. Era um vestido tomara que caia verde-água, no qual eu tinha uma imensa vontade de tacar fogo. Ainda mais agora. Joguei o saco sobre a cama.
Alex levantou o rosto para mim, um pouco receosa, e abriu o saco. Ela tirou o vestido e arfou. Esticando-o sobre a cama, ela alisou o corpete e disse:
— Tudo bem, fala comigo. O que foi que aconteceu hoje?
— Hoje, ontem, amanhã — rebati. — Que parte da minha vida não é uma droga?
Os olhos dela se arregalaram.
— Desculpa — falei, me acalmando. — É só que… tudo virou um inferno.
— O que quer dizer?
Contei a Alex sobre minhas mentiras para Lorna, o modo como todos olhavam para mim, a reunião do Conselho Estudantil, Larry me tratando como lixo, Polly me confrontando no banheiro. Tudo.
— Ela me chamou de… — minha voz vacilou — sapatão.
— Ah. — Alex fez uma careta. — Melhor se acostumar com isso. A melhor coisa que você pode fazer é se chamar de sapatão. Sapata, cola-velcro, fanchona. Todas as palavras que usam pra te odiar, você pode usar pra se divertir. Reivindique-as. De modo que elas não possam ser usadas contra você.
Usadas contra mim. Eu nunca fui chamada por apelidos antes… pelo menos, não na cara dura. Nunca havia percebido o quanto eles machucam. Num nível pessoal.
— O que foi que eu fiz pra ela? — Fiquei imaginando em voz alta. — Pensei que a Polly fosse minha amiga.
— Lição número um — Alex falou —: você nem sempre pode confiar nos amigos. Lição número dois: você não precisa fazer nada pra ser odiada por ser gay.
Essa era a verdade que eu estava descobrindo.
— Mas esse problema é deles, Piper. — Os olhos dela encontraram os meus. — Não é seu. Lembre-se disso.
Problema deles. Certo. Então por que eu me sentia doente com tudo isso? Batendo a porta do armário, falei:
— A cereja no bolo, o ponto alto do meu dia foi quando o Winslow me convidou pra ser seu par no baile de formatura.
O queixo de Alex caiu.
— E o que você disse?
— Eu disse: “Claro, eu adoraria, Winslow. Que horas você vai mandar a limusine passar em casa?”.
Alex murchou visivelmente.
— Agora, ele acha que eu tenho um problema com os punks, como se eu fosse uma tremenda intolerante. — Minha garganta raspou. — Pior que isso, eu o magoei. Winslow Demming, o cara mais legal do mundo. — Abracei meu próprio corpo, sentindo dor ao lembrar. — Isso me aborrece pra valer, Alex. Não é só o Winslow, ou o Larry, ou mesmo a Polly. Tudo junto. Eu. Estou tão acorrentada a esse segredo e quero morrer.
— O quê? — Alex arquejou. — Não diga isso.
— Eu poderia ter feito uma coisa importante no Conselho Estudantil este ano. Promover a diversidade, a tolerância; poderia ter feito a diferença na Southglenn High. Mas, em vez disso, estávamos decidindo quantas porcarias de balões pendurar na porra do salão de baile. — Meu olhar incendiário recaiu sobre o vestido e sobre Alex, que o acariciava. Por força do hábito, resgatei minha mochila do chão, tirei o celular e verifiquei. — O que alguém “assumida e com orgulho” faz no baile de formatura? E no de boas-vindas? Todas essas porcarias de eventos sociais?
— Nós, geralmente, vamos em grupo — Alex falou baixinho. — Se você quiser, podemos ir juntas ao baile.
— Ah, claro. — Virei para ela. — Ficarmos em extremidades opostas do salão, ignorando uma à outra? — Balancei a cabeça. — Eu deveria ter contado a ela — falei, olhando para o celular na minha mão. — E pro Larry também. Eu deveria ter contado pra todo mundo. Não que as reações tivessem sido ser diferentes. É só por esse medo de quem sabia, de quem me expôs, de todos suspeitarem, e eu acusá-los. Que diferença faz quem me delatou? Eu deveria ter me assumido por conta própria.
Meus olhos desviaram para a janela, para o beco, onde William estava ajudando um novo morador-em-transição a arrastar suas caixas para dentro.
— Fazer isso, me esconder, é como se eu admitisse que estou errada. Como se estivesse com vergonha de mim. Não estou envergonhada. Nem de mim, nem de você, nem do que sentimos uma pela outra. Eu quero que o mundo inteiro saiba. — Voltei-me para ela. — Quero ser eu mesma. Eu magoei as pessoas. Lorna, Winslow, Larry, minha mãe. Eu, Alex. Eu estou magoada. — Pousei a mão no coração. A ferida era tão profunda que parecia que jamais se curaria.
— Ah, Deus — Alex gemeu. — Por que você não me contou?
Por que não contei?
— Porque eu não queria que você pensasse que eu não estava feliz, ou que estivesse arrependida de ter me apaixonado por você. Não estou. Estou feliz… com você. — No entanto, eu não podia mais omitir a verdade. — Estou com medo, Alex. Estou tão sozinha no mundo que, se você me deixar… — Não consegui terminar a frase, não consegui terminar o pensamento.
— Não — Alex disse, apressada. Ela decolou da cama e veio até mim. — Eu não vou deixar você. O que te leva a pensar isso?
— Você mentir pra mim. Fugir por aí. Ir até a Unidade pra ficar com eles. A única razão que acho que pode haver pra você mentir pra mim é… que existe outra pessoa.
— Não. — Alex agarrou meus braços. — Eu nunca faria isso com você. Nunca.
Queria poder acreditar nela. Queria acreditar.
Ela me soltou e cobriu o rosto com as mãos.
— Ah, Deus. — Em uma voz esganiçada, ela disse: — Tenho uma confissão a fazer. Eu menti pra você. Menti bonito.
Não, por favor, não deixe que ela diga isso. Não a deixe dizer que ama outra pessoa.
Tudo o que consegui fazer foi continuar respirando. Continuar vivendo. Alex se afastou e começou a perambular, esfregando os dedos. Nervosa, agitada, do jeito como ela fica quando toma muito café. Quando passou por mim, disse:
— Eu enganei você.
Meu coração parou de bater. Morrendo. Estava morrendo.
— Eu não tinha o direito de pedir pra você não se assumir. Não tinha esse direito. Eu não estava tentando proteger você. Todo esse negócio de guardar segredo? Isso era tudo pra mim. Pra mim. — Ela bateu no próprio peito. — Sou uma canalha egoísta.
Meu cérebro permitiu que as palavras dela entrassem. Uma canalha egoísta? Por que dizia isso? Não, ela não era. Sentando no colchão, ela bateu na testa com o punho, murmurando:
— Eu arruinei sua vida. Arruinei sua vida por não deixar que você se assumisse. Eu deveria simplesmente ter ficado na Washington Central. Você estaria melhor se nós nunca tivéssemos nos encontrado.
— Isso não é verdade — falei. — Para. — Ela ia se machucar se continuasse esmurrando a própria cabeça. Sentei ao lado dela e puxei seu braço. — Por acaso isso tem alguma coisa a ver com o motivo por que você se transferiu? O que aconteceu na Washington Central?
Ela não respondeu, apenas mergulhou dentro de si mesma. Um longo tempo passou. Alex levantou a cabeça e lentamente olhou para mim. Assentiu.
— Você pode me contar? — Pedi. — Por favor?
Ela prendeu as mãos entre as pernas.
— Eu não quero. Você vai me odiar.
— Eu jamais conseguiria te odiar. Por favor — implorei a ela. Estava tão cansada dessas mentiras todas, da ocultação, do segredo. Não era ela que não gostava de jogos? — Só me conte a verdade, ok? Acho que mereço isso.
Ela olhou para mim e engoliu em seco.
— Você tá certa. — Ela se levantou e foi até o armário. Encaixou a porta de volta na dobradiça, pois eu a havia desarticulado ao bater. Ela disse: — Joanie era… minha namorada. Foi a primeira garota que eu amei. Quero dizer, que amei de verdade. Como um estouro de fogos de artifício, sabe? — Ela me olhou por sobre o ombro.
É, eu sabia agora.
Alex acrescentou rapidamente:
— Mas esses fogos eram pequenos em comparação com você.
Sorri de leve.
— Mas eu a amava, não vou mentir pra você, Piper. Eu teria ficado com ela pra sempre se… se… eu pudesse.
Senti uma pontada, mas ela estava falando sobre o passado.
— Continue — falei. — O que aconteceu?
Alex começou a andar de novo, batendo os nós dos dedos.
— A gente se encontrou em um festival de arte em Cherry Creek. Eu tinha acabado de formar a Unidade e recebemos um convite pra uma apresentação de rua. Nossa primeira performance. A Joanie estava lá, no festival, no meio da multidão, colhendo assinaturas pra uma petição sobre desarmamento ou coisa assim. Ela era muito ativa no Comitê de Ação Política da escola. Mais ou menos, como você com o Conselho Estudantil. Foi assim que a gente se conheceu. Ficamos apaixonadas muito depressa. Pelo menos eu fiquei. — Nossos olhares se cruzaram. — Não estou contando isso pra magoar você, Piper.
— Eu sei. Tudo bem. Me conte tudo. — Atirei o vestido de formatura para o lado e me sentei, apoiada na cabeceira da cama.
— Joanie ia a uma escola diferente, a St. Mary’s Academy — Alex falou. — Pense na homofobia da Southglenn multiplicada por dez.
Eu me encolhi. Não conseguia nem imaginar.
— Joanie não era assumida. Ninguém era. E a última pessoa a se assumir, ali, foi expulsa.
— Jesus.
— É, ainda existem lugares iguais a esse, acredite ou não. Idade das Trevas. Além disso, a Joanie estava apenas descobrindo que era gay. Assim como você. E era por isso que costumávamos brigar. Não é possível uma pessoa ser totalmente assumida e a outra estar no armário. Bem, é possível, mas não vai funcionar por muito tempo. Vocês não podem sair juntas em público, nem estar com os amigos… — Ela parou e olhou para mim. — Mas acho que você sabe disso.
E como sabia.
Alex fisgou uma calça jeans do chão e deixou-a dobrada na cadeira da cozinha, depois foi até a janela e ficou observando o lado de fora.
— No clube LGBT da Washington Central, eu fiquei meio que encarregada de ajudar as pessoas a saírem do armário. Porque existem formas melhores e piores, e momentos melhores que os outros, e qualidades a se procurar nas pessoas, pra aferir suas atitudes e antecipar se vão aceitar você. — Ela estava falando tão depressa que precisei ouvir com muita atenção para acompanhar. — Cada um é diferente — ela disse, virando-se para mim e se apoiando no parapeito da janela. — Pra alguns gays é mais fácil contar primeiro pros amigos, porque a coisa mais importante é você se sentir aceito pela primeira pessoa a quem contar. E a coisa mais difícil pra maioria de nós é contar pros pais. Mas existem formas de contar pra eles sem causar um choque tão grande. E você sempre deve contar a eles, antes que outra pessoa o faça. — Alex desviou os olhos. Ela se ergueu e foi até a geladeira, abriu a porta e vasculhou o interior, que não tinha quase nada.
Tudo o que ela dizia ficava dando voltas na minha cabeça. Eu continuava pensando: precisávamos ter tido essa conversa sobre sair do armário antes. Talvez, ela tenha esperado até que eu estivesse pronta. Só que eu já estavapronta. Estava preparada para isso desde o primeiro dia.
Alex fechou a geladeira e se virou. Ela sorriu, nostálgica, e falou:
— A melhor coisa em sair do armário é que é totalmente libertador. Você fez essa descoberta incrível sobre si mesma e quer compartilhar, expressar e ser sincera, em vez de passar o tempo todo imaginando como tal pessoa vai reagir, ou será que devo tomar cuidado perto dessa pessoa, ou o que os vizinhos vão dizer? — Os olhos dela estavam faiscantes agora. — E muito mais. Tem a ver com superar aquela pergunta, o que há de errado comigo, sabendo que não há nada de errado, que você simplesmente nasceu assim. Você é uma pessoa normal, uma pessoa bonita e deve sentir orgulho de ser quem é. Você merece viver, e viver com dignidade e mostrar às pessoas o seu orgulho.
Eu não via a hora de poder me assumir e me orgulhar como Alex. Ser forte e autoconfiante. Foi isso que me atraiu nela em primeiro lugar.
— Uau, Alex. — Abracei meus joelhos. — Eu nunca tinha ouvido sobre o seu papel no clube LGBT. Que fantástico devia ser pra alguém que está passando por isso ter alguém como você. Como uma conselheira, uma mentora.
O rosto de Alex empalideceu. Ela fechou os olhos e se contraiu, como se estivesse com dor. Uma conexão… tinha de haver uma.
— Isso tem alguma coisa a ver com a Joanie? — Perguntei suavemente.
Alex fixou o olhar na parede acima da minha cabeça. No retrato que desenhei dela e ela havia emoldurado e pendurado sobre a cama.
— Contei a Joanie tudo isso — Alex falou. — Sobre sair do armário, viver abertamente. Eu sabia que ela seria muito mais feliz consigo mesma se pudesse vencer seu medo. Ela entendeu isso. Odiava se esconder, mas não podia se assumir na escola. Tinha muito a perder. Ela era uma pessoa muito inteligente, assim como você. — Os olhos da Alex pousaram em mim. — Ela tinha planos pra universidade e não podia correr o risco de ser expulsa. Todos os amigos dela estavam lá também, e ela não sabia como eles lidariam com isso. Nem como ela lidaria, caso eles não a apoiassem. E os pais dela… — Alex balançou a cabeça. — Várias vezes, a gente imagina que coisas horríveis vão acontecer quando contarmos a eles. E geralmente não acontecem.
É, pensei. E há vezes em que acontecem. Eu podia compreender o medo da Joanie.
— No verão, convenci a Joanie a se transferir pra Washington Central, onde as pessoas eram mais acolhedoras — Alex falou. — Finalmente, finalmente ela decidiu fazer isso. Mas apenas depois que contou pros pais dela.
Ah, não, pensei. A mesma coisa aconteceu com Joanie? Os pais dela não reagiram bem?
— Ajudei a Joanie a descobrir o que dizer, como dar a notícia pra eles. E foi melhor do que ela esperava. Dei a ela uma brochura que tínhamos no clube LGBT, pra que ela desse aos pais. Um livro que listava as perguntas e respostas básicas: É culpa minha? O que posso fazer para ajudar? Que perguntas devo fazer ao meu filho ou à minha filha? Eles ficaram em choque, claro. Mas acredito que já suspeitavam. Acho que os pais sempre sabem, eles só não querem acreditar. — A voz da Alex mudou. — Eles querem tornar isso o mais difícil possível pra nós. É uma questão de poder irresistível pra eles. Em todo caso… — Ela afastou o ressentimento com um dar de ombros. — Os pais da Joanie foram bem legais. E eu tinha dito a ela que eles seriam. Era óbvio que eles a amavam muito.
Uma lâmina atravessou meu coração.
— Ah, Piper. — Alex correu para a cama e engatinhou pelo colchão. — Sinto muito. Sinto muito. Não quis dizer isso me referindo à sua mãe. Eu sei que ela ama você.
— Está tudo bem. — Afastei-a com a mão. — Estou bem. — O que era mentira, e ela sabia disso.
Os ombros da Alex caíram e ela torceu o corpo, ficando de costas para mim.
— Eu teria aconselhado você a fazer algo diferente com a sua mãe. — Ela pegou o vestido de formatura. — Talvez, escrever uma carta. Dar tempo pra que ela pensasse nisso. Pelo jeito como sua mãe me tratou naquele dia, eu sabia que ela teria problemas.
— O que quer dizer? Como ela tratou você?
— Você não notou? — Alex girou a cabeça. — Assim que ela viu minha camiseta, ela surtou. Não queria nem que eu tocasse na Hannah, como se eu fosse uma abusadora de crianças ou coisa assim.
— Sério?
Alex meneou a cabeça.
Eu não havia notado. O que dera na minha mãe? Ela era uma homofóbica desvairada e eu nem havia percebido?
— Termine, Alex. O que aconteceu na Washington Central?
Alex deixou o vestido de lado e começou a acariciar a correntinha da minha tornozeleira.
— A Joanie virou uma pessoa totalmente diferente depois que se assumiu pros pais. Louca, travessa, feliz o tempo inteiro. Porque é o que acontece se você ficar suprimindo por muito tempo. Primeiro você fica paranoica e envergonhada. Não por ser gay, mas por ser tão covarde. Depois, tudo o que você quer é ser sincera, ser quem você é de fato.
Eu sei! Quase gritei. Eu sei.
— Na Washington Central, eu fui devagar primeiro. Apresentei a Joanie pra dois amigos, de modo que ela soubesse como é estar rodeada por outras pessoas gays. Porque é fantástico. — Ela sorriu por sobre o ombro, para mim. — Você pode conversar sobre coisas que estão acontecendo na sua cabeça e na sua vida. Pode falar sobre namoradas e rir e fazer piadas sobre sexo e coisas assim. Todos gostavam muito da Joanie, e ela gostava deles e tudo era lindo assim. — Alex pulou da cama e saiu andando pelo quarto. — Tem café?
— Não, acabou — disse a ela. — Desculpa. Eu devia ter passado no mercado e comprado um pouco depois da aula. — Minha mente não estava lá muito preocupada com as compras, eu deveria acrescentar.
— Droga. — Ela bateu a porta do gabinete da cozinha, acima da pia.
— Tem chá…
— Odeio chá. Você sabe disso.
— Deus.
Ela girou. A cabeça caiu para trás e ela murmurou:
— Desculpa. Desculpa. É que… a próxima parte é difícil. Eu nunca contei pra ninguém, exceto minha mãe. Não precisei, porque meus amigos viram isso acontecer. — A voz dela tremia.
— Vem cá. — Abri os braços para ela.
— Não. Deixa eu terminar. — Ela respirou fundo. — Então, a Joanie estava assim: “Isso é incrível. Por que não me assumi antes? Vamos contar pro mundo inteiro que sou gay”.
Isso soou familiar. Não deixei de captar a ironia. Havia muitas semelhanças entre eu e Joanie.
— Contei ao clube que nós íamos dar outra festa de saída do armário, que é o que fazemos quando alguém entra pra comunidade. Então, demos a festa e foi fantástico. A Joanie se sentia incluída, aceita. E eu finalmente tinha uma namorada com quem podia almoçar, e levar pras reuniões, e andar de mãos dadas no corredor. A Joanie até entrou pra Unidade, pra que pudéssemos estar juntas o tempo inteiro. Todo mundo adorava a Joanie e ela adorava todo mundo. — Os olhos da Alex ficaram sombrios. — Especialmente a Jenna.
Ah, meu Deus, não.
— Não me conte.
— Estou contando — ela disse, sem emoção. — Ela amava a Jenna.
A mágoa na voz da Alex, no rosto dela.
— Ah, querida.
Lágrimas encheram os olhos da Alex. Eu deslizei para fora da cama e fui até ela.
— Eu encontrei a Joanie… — ela gemeu. Eu a abracei. — Eu a amava, ela era minha. — As lágrimas corriam pelos olhos dela. Eu nunca a havia visto chorar. — Joanie e Jenna. Que perfeito — ela ironizou.
Ela devia estar reprisando isso havia meses, pois as lágrimas continuaram escorrendo sem parar. Ela soluçou no meu cabelo, gemidos arrasadores. Eu detestava que ela estivesse chorando pela Joanie. Mas detestava mais o fato da Joanie tê-la magoado tanto.
— Como você suporta tê-la na Unidade? — Perguntei. — Vê-la o tempo inteiro?
Alex limpou o nariz na manga da camisa.
— Eu comecei a Unidade, é o meu grupo. Não vou deixar que ela roube tudo de mim. Além disso — ela fungou —, a Joanie ainda quer ser minha amiga. Acho que posso lidar com isso.
Alex era forte, mais forte que eu. Eu mataria Joanie.
Ela foi até o banheiro e voltou com um pedaço de papel higiênico. Ela soou o nariz e disse:
— A Joanie tomou conta do clube LGBT também. Eles a elegeram presidente, e ela começou a se envolver com todas as causas, como a AIDS Walk, e abrir nosso clube para héteros, tornando-nos uma aliança gay e hétero. Ela até foi convidada para a posição de porta-voz do Centro.
— Deus. Isso, sim, é se sentir traída.
— Sem brincadeira — Alex falou. — Não podia deixar que você se assumisse, Piper. A Brandi já estava perguntando sobre você. E minhas outras amigas, se elas conhecessem você… — Ela parou e respirou fundo. — Não podia deixar a mesma coisa acontecer. Você era tão parecida com ela. Eu disse que você seria o meu segredo? É, você era o segredo que eu estava guardando das outras.
— Ah, Alex.
Os olhos dela marejaram de novo.
— Você deve me odiar — ela disse. — Sair do armário é uma decisão tão pessoal. Você é a única que pode fazer isso. A única que sabe qual é o momento certo. Olha o que eu fiz com você. Arruinei sua vida.
— Não.
— Sim! Você não vê? Fui eu quem te traiu. Devia ter deixado que você se assumisse. Você devia ter contado aos seus amigos. À sua mãe. Deveria ter vindo de você. Não do Larry. Não da Faith. De mais ninguém.
Ok, ela estava certa. Acho que me senti um pouco traída, especialmente porque Alex sabia como é autodestrutivo ficar no armário. No entanto, ela não era a única culpada. Eu concordei em guardar segredo. Até usei isso como desculpa para não contar à Mamãe.
— Não sei se as coisas teriam sido diferentes dependendo de quem contasse pra minha mãe — informei Alex, afastando os cabelos dela do rosto molhado em lágrimas.
— Mas poderiam ter sido. — Ela engoliu em seco. — E é isso que está me rasgando por dentro. Eu transformei você em uma sem-teto. — Ela começou a chorar de novo.
Apertei o rosto dela entre minhas mãos.
— Ah, querida, você não fez isso. Foi minha mãe quem fez. E você não arruinou minha vida. — Enxuguei as lágrimas nas bochechas dela. — Ainda estou aqui, certo? Eu deveria ter contado pra você como estava me sentindo, o que estava acontecendo. Poderíamos ter colocado isso tudo pra fora e conversado. Eu não odeio você. Não poderia. Na verdade, entendo por que você fez isso.
Ela piscou.
— Entende?
Meneei a cabeça.
— Eu também faria de tudo pra guardar você pra mim.
Ela se desfez em lágrimas de novo.
Eu estava tão aliviada por finalmente saber a verdade. Expor todos esses sentimentos e temores e lidar com eles. Alex não parecia compartilhar do meu alívio. Mesmo depois que parou de chorar, a culpa no olhar dela era torturante.
— Você disse que somos iguais, Alex, mas não somos — eu disse a ela. — Somos pessoas diferentes, a Joanie e eu. Eu sei que sou diferente. Por que eu olharia pra qualquer outra pessoa, se você é tudo o que eu queria?
— Ah, Deus, Piper. — Ela me esmagou com um abraço tão apertado que fiquei sem ar. Isso me fez rir. Fez com que ela risse também.
Depois, não conseguíamos parar de rir. Foi maravilhoso, fantástico. Nunca havia sentido tanta alegria, liberdade e certeza. Sobre mim. Sobre ela. Sobre nós.
Confiança. Tudo isso tinha a ver com confiança. Você não tem nada, a menos que possa confiar na pessoa que ama.
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