1487.
Estava frio, um frio insuportável, e Damara podia sentir muito bem o frio dali em seus braços descobertos. A jovem acordou aos poucos, coçando seus olhos, então o ambiente escuro clareou pouco a pouco. Era uma sala espaçosa, não haviam móveis, portas ou janelas, mas Damara não estava assustada, apenas curiosa; levantou-se sem pressa e continuou olhando em volta, então parou seu olhar em um homem bem vestido que se aproximava dela. Ele sorriu, curvando-se diante a jovem, e seus olhos vermelhos deixaram a bruxa ainda mais intrigada a seu respeito.
— Quem és tu? Por que me trouxeste aqui?
O homem soprou um riso, caminhando ao redor do corpo alheio.
— Este é o Inferno.
Damara franziu a testa e olhou para os lados.
— Não é como imaginei.
— Nunca é como as pessoas imaginam. — Ele abriu um largo sorriso. — O Inferno é aquilo que as pessoas temem. Esta sala vazia é uma representação do seu próprio vazio, o qual você teme.
— Bobagem!
— Damara, não tente mentir para mim. Sei que és corajosa, mas o medo de ficar sozinha é maior que sua coragem. Afinal, tu nada desejas mais do que viver tranquilamente com quem tu amas.
— Diga-me de uma vez o porquê de eu estar aqui.
O homem colocou as mãos para trás e suspirou.
— Disse esta noite que deseja vingança contra aqueles que a ti fizeram sofrer.
O mensageiro suspirou, apontando para um par de cadeiras — que antes não estavam ali —, e ambos sentaram-se um de frente para o outro.
— Podemos chegar a um acordo, o que acha?
— O que quiser!
— Pois bem. — Um largo sorriso surgiu em seus lábios. — Faremos algo que seja interessante para todos. Observei-a bem, Damara, tens uma inteligência invejável, um poder imensurável e, é claro, uma beleza inegável. Com tantas qualidades, conseguirá conquistar o que desejar. Poder, dinheiro, classe, vingança... tudo.
— Ora, vamos diretamente ao ponto, senhor. O que propõe?
O homem riu, apoiando os cotovelos nas próprias pernas, para então aproximar-se mais da bruxa.
— Cinco herdeiros.
Disse ele, fazendo-a erguer uma das sobrancelhas.
— Precisamos de cinco pessoas de grande importância na sociedade humana.
— E em quais pessoas pensou, senhor?
— Os futuros Reis, Conde, Barão e, principalmente, de uma camponesa.
— Em que uma camponesa seria útil?
O homem sorriu, acariciando a lateral do rosto da bruxa.
— A beleza de uma mulher pode causar o caos, principalmente se ela for uma camponesa. Sem seus súditos, o que seriam dos Reis? — Ele sorriu outra vez. — Preciso que faça com que os filhos dos atuais nobres tenham parte do Mestre.
Damara calou-se, pensativa, então uma luz surgiu em seus pensamentos e um largo sorriso desenhou-se nos lábios. Ela ajeitou-se na cadeira e cruzou as pernas.
— Já sei o que farei, meu senhor. Conseguirei seus cinco herdeiros.
— Se assim for, terá tudo o que desejar.
— Não se preocupe.
— Porém, se a senhorita não conseguir, ficará presa junto de seu marido ao lado do Mestre até que, finalmente, consiga cumprir com sua palavra. No entanto, é melhor se esforçar em vida, pois será difícil quando estiver morta.
Damara apenas gargalhou, apoiando os cotovelos nos braços da cadeira, para então negar tranquilamente.
— Então permita-me sugerir algo.
— Prossiga, estou curioso.
— Se eu fracassar, o que será difícil, permita-me colocar em meu lugar outra pessoa, para que em terra faça por mim o serviço.
— Interessante, Damara. Quem tens em mente?
— Quando a pessoa certa surgir, saberá!
— Mas não se esqueça que Alcander também faz parte disto.
— Confie em mim, senhor. Sou muito cautelosa.
— É um prazer negociar com você, Damara.
O homem sorriu e em um piscar de olhos a bruxa acordou em sua cama, sentando-se imediatamente conforme respirava ofegante.
31 de outubro de 1504.
Os amigos e familiares de Pandora esperavam inquietos na sala do Palácio de Jeon, enquanto o dono deste tentava consolar o amigo. Passaram-se horas desde que Hoseok e Annelise foram até o cômodo em que a falecida rainha estava para tentar salvar o filho, e a cada instante a esperança de boas notícias se esvaía.
Finalmente, após muita espera, ambos desceram as escadas até a sala, fazendo com que todos se levantassem. Annelise olhou para os familiares e negou com a cabeça.
— Meu filho... ele não sobreviveu? — Perguntou Jin, com sua voz embargada.
— Sinto muito, meu amigo, mas os seus filhos faleceram junto à mãe.
— Filhos?
Hoseok assentiu, abaixando a cabeça ao fechar os olhos.
— Eram dois meninos.
— Pandora inalou muita fumaça, as crianças provavelmente morreram pouco antes de chegarem até aqui.
Jin segurou suas lágrimas, sentindo o queixo tremer e a respiração falhar, mas tudo era em vão, o choro não podia cessar. Damara levantou-se e tocou o pulso do marido de sua irmã, abraçando-o com todo o carinho que havia.
— Ela o amou muito, senhor. Pandora foi feliz ao teu lado.
— Não devia tê-la deixado ir, Damara. Talvez se eu estivesse junto dela... céus, como meu coração dói!
— Descobriremos quem fez isso, senhor! Eu mesmo matarei quem fez mal a ela.
Enquanto ainda abraçados, Hoseok puxou o pulso de Taehyung — este já livre de qualquer ferimentos, exceto pelas roupas parcialmente queimadas — e se afastou dali.
— Sei quem fez isto.
— Como?
— Não fui ajudar Annelise apenas na cirurgia, aproveitei-me de meus conhecimentos médicos para estar ali e tentar vasculhar as memórias de Pandora.
— Como foi possível? Ela está morta.
— Sequer consigo imaginar o porquê, mas consegui! Não direi nada aos outros, pois agirão por impulso. — Hoseok respirou fundo e olhou para os lados, tendo certeza de que ninguém os ouvia. — Pandora viu o Alcander, ele perguntou se Damara estava junto dela no momento, então muitos camponeses atearam fogo à cabana após as ordens do cavaleiro.
— Aquele inútil! — Taehyung cerrou os punhos, virando-se de costas para Hoseok, mas este o segurou. — Acalme-se, amigo! Primeiramente daremos atenção e conforto ao Jin e Damara, para então atacarmos aquele verme. Não diga a ela, ou ela irá pessoalmente atrás do Alcander, e nós sabemos que ela não está em condições.
— Tens razão. Aguardarei o luto de minha amada acabar, então agirei.
— Será melhor desta forma, assim nada mais afetará o seu filho.
Taehyung franziu a testa, olhando assustado para o amigo, mas Hoseok sorriu.
— É difícil esconder certas coisas de mim, mas não se preocupe, não contarei a ninguém sobre isso.
— Obrigado, meu velho amigo.
Hoseok acenou e voltou para perto de Jimin e Annelise, enquanto Taehyung mantinha seus pensamentos distantes. Apesar de tanto sofrimento e injustiças, Hoseok ainda era uma boa pessoa.
Ao menos, ainda parecia ser.
***
1 de novembro de 1504.
Haviam muitas pessoas presenciando o funeral de Pandora, entre elas, Alcander. Ele sequer sabia que Damara não estava junto à irmã, o que o fez pensar que chegariam até o local dois corpos, porém, sua expressão confusa tomou conta do rosto quando apenas três caixões apareceram, sendo dois deles minúsculos. Seu corpo estremeceu e seu coração disparou, logo levando sua atenção até uma das carruagens que chegara junto dos corpos. A respiração do cavaleiro falhou e o coração apertou quando Damara, sem um ferimento sequer, segurou a mão de Taehyung para descer do veículo. O vestido largo e preto escondia perfeitamente sua barriga de seis meses, e apesar do véu de renda também negro que cobria seu rosto, era possível ver a seriedade em sua face. Quando os olhos da bruxa cruzaram com a face assustada de Alcander, um sutil sorriso apareceu. Damara desconfiava de seu antigo marido e aquilo era perceptível e, se assim fosse, ela não mediria esforços para o fazer pagar.
Taehyung companhou a esposa até o pai dela, completamente desolado, e ela sorriu para o homem, o qual a acompanhou até perto dos caixões. O coração do homem estava apertado, assim como o de sua filha, então, disse ele:
— Querida, venha morar com seu velho pai. Veja nisto uma oportunidade para ficarmos mais próximos. É perigoso se ficar sozinha.
— O senhor és um bom homem, tens bom coração, mas prefiro ficar sozinha.
— E onde ficará?
— Papai, confie em sua filha, pois tudo ficará bem.
Damara beijou a testa do pai e suspirou. Ela não poderia colocar o pai em perigo, e sabia muito bem que se com ele ficasse, o colocaria em perigo.
***
4 de novembro de 1504.
Damara estava sentada em frente ao rio junto de seu marido, enquanto ambos admiravam a água tranquila e limpa. Taehyung segurou a mão da esposa, entrelaçando os dedos aos dela.
— Querida, eu sabia o que aconteceria.
— Eu sei.
— Sabe? — Indagou ele, arqueando as sobrancelhas. — Como?
— Não importa como descobri, Taehyung. Infelizmente, descobri quando já era muito tarde. — Forçou um sorriso, olhando para o homem ao lado. — Taehyung, não temo por mim, temo por ti e por nossa filha. Eu aceito fugir.
— Como desejar, minha dama. — Sorriu, beijando-a a mão. — Cuidarei de minhas pendências rapidamente e deixarei tudo pronto para nossa partida. Tens ideia de onde gostaria de ir?
— Tenho algumas terras em meu nome, poderíamos vender e reconstruir nossas vidas em um país distante.
— Como conseguistes terras, minha dama?
— Alguns favores a certas pessoas.
— Conversarei com meu primo sobre colocar outro em meu posto.
— Tens certeza? Digo, seu primo está à beira da loucura. Desde que minha irmã faleceu, ele sequer sorri, adotou políticas insuportáveis! Sequer gosto de ficar perto dele.
— E a quem eu confiaria este assunto?
— O Rei Jeon não poderia ajudar?
— Está tratando de assuntos em outros Reinos, minha dama. Sempre evitei os assuntos pertinentes a nós para não a preocupar, mas estamos chegando a situações críticas. Não sei o que há de errado, mas nosso solo não é mais fértil, o sol pouco aparece, a chuva é rara e os assassinatos continuam. Seokjin não consegue lidar com este reino, tornou-se egoísta e frio. Jeon percebe que a aliança não o serve mais, por isso está tratando com outros Reis. As pessoas não vão mais à Igreja, Damara. Será que Deus se esqueceu de nós?
— Não, meu amado... Deus não se esqueceu de nós. Ao menos eu espero que ele não tenha esquecido e que tenha misericórdia de nossa alma.
Damara suspirou e olhou para o céu, fechando seus olhos ao sentir as lágrimas surgirem.
10 de novembro de 1504.
— O que espera, querido? — Perguntou Annelise, massageando os ombros do marido. Jeon suspirou.
— Estou com medo, minha amada. — Respondeu a ela ao tocar nas mãos alheias. — Será que posso abrir?
— Farei um chá, meu amado, assim darei privacidade e se sentirá mais confortável.
— Obrigado, querida.
Ele sorriu e beijou-a os lábios, então a loira saiu do quarto, trancando a porta. Jungkook olhava fixamente ao diário já fora da caixa, enquanto deslizava os dedos pela capa dura e envelhecida. Seu coração estava acelerado e seu estômago doía de ansiedade, mas o medo de descobrir toda a verdade o fazia hesitar. Então, um par de mãos gélidas tocou seus ombros, assustando-o.
— O prazo acabou, Jungkook. Poderá abrir assim que desejar.
Jeon virou-se de frente ao homem dos olhos vermelhos, pensativo.
— Não se preocupe, pois cumprirei com a minha parte do trato.
— Confio em ti, humano. — O homem sorriu.
— Então devo o libertar neste momento?
— Não. Acredito que ainda precisará de mim quando tudo isso acabar.
— Por quê?
O homem nada disse, apenas sorriu e deu leves tapas no ombro alheio, para então desaparecer tão rapidamente quanto surgiu. JungKook voltou a olhar o diário em suas mãos, reunindo todo o restante de sua coragem para finalmente abrir, lendo o nome de sua mãe logo de início.
— Ao meu amado filho, de Jeon Sunhee.
Leu em voz alta, deslizando os dedos pela tinta seca. Ele virou a página, então, também em voz alta, começou a ler:
Nunca fui uma humana livre de pecados, justamente por isso acredito que Deus deixou de acreditar em minhas preces, mas ele é bondoso e amoroso, tenho certeza de que a minha alma ele perdoará. Eu era uma boa esposa, uma boa Rainha e uma mulher apaixonada por seu marido, muitos diziam que o amor não existe entre os nobres, mas existe, e por eu sentir tanto amor é que desejei dar um filho ao meu amado marido. Algo estava errado, eu não era capaz de engravidar e isso me desesperou. O que seria de mim sem o meu marido? Céus, eu morreria sem o amor de meu esposo, pois mesmo que ele deixasse de ser um homem importante para a sociedade, ainda seria um homem importante para mim, afinal, eu o amava mais do que amava a mim mesma. Então, desesperada e sem saída, ouvi o conselho de minha velha amiga, a Rainha Kim, a qual procurou por uma jovem bruxa muito sábia, então, amedrontada e ainda receosa, procurei por ela. Infelizmente aceitei fazer parte de um ritual que me daria um filho, e de fato me deu, porém, após alguns meses de gestação comecei a ter pesadelos horríveis, dores insuportáveis e logo aparições demoníacas começaram a me perturbar. Procurei pela bruxa, mas ela me ameaçou, ameaçou a todos e ao meu filho também, e pensando naquela criança que, apesar de tudo, não tinha culpa de nada, acabei aceitando me calar. Infelizmente havia um demônio mandado por ela perseguindo a minha família, o mesmo demônio que me levaria se eu abrisse a boca.
Hoje estou próxima ao dia do parto, as aparições diminuíram e a dor também, mas sei que não conseguirei me calar até o dia chegar, ou seja, não conseguirei proteger o meu filho.
Jeon, se estás lendo este desabafo é porque já parti e o dia ainda não chegou, então corra, meu filho! Corte o mal pela raiz enquanto ainda há tempo, e leia atentamente tudo o que eu disser aqui, pois contarei cada pequeno detalhe de como tudo aconteceu.
Perdoe a mamãe por tanta dor que causei a ti, meu amor, e nunca duvide do que sinto por ti, pois o meu amor é a única coisa da qual não me arrependo.
Lembre-se, meu anjo: seja forte e não caia em tentação.
Jeon Sunhee.
Jeon apertou o diário entre seus dedos, com os olhos repletos de lágrimas e uma dor grandiosa cobrindo seu peito, e a partir daquela primeira folha tudo começou a se esclarecer em sua mente, fazendo-o desejar voltar no tempo.
— Céus, como eu preferia não ter aberto o diário...
Annelise entrou no quarto e deixou a bandeja com o chá ao lado do marido, percebendo suas lágrimas. Ela agachou ao lado dele e tocou seu rosto.
— Querido, o que há?
— Annelise... reúna meus amigos.
— Neste momento? Não prefere esperar o amanhecer? Digo, amanhã é meu aniversário, meu amado, todos estarão reunidos.
— É sobre o diário, quero que os traga neste exato momento, ao menos os que conseguir encontrar. Mande alguns guardas atrás deles, por gentileza.
— Como desejar, querido. — Levantou-se, beijando-o a testa. — Tome o seu chá.
Ele assentiu e a loira virou as costas, mas ele logo correu até ela e a abraçou pela cintura, beijando-a um dos ombros.
— Sinto que algo ruim acontecerá, então eu quero que não se esqueça deste momento. — Disse ele ao virar a esposa de frente para si, beijando-a carinhosamente. — Eu amo você, Annelise.
— Eu também amo você, querido, mas estás me assustando. O que há naquele diário?
— Traga-os aqui e eu contarei.
Annelise concordou e imediatamente se retirou, então Jeon voltou até o local anterior e voltou a ler as páginas amareladas.
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