Capítulo Único – olhar em silêncio um jardim no escuro.
Ali quase era infeliz e não entendia como. Em frente ao espelho e com mãos sobre o colarinho havia intrépida angústia, pequena como um grãozinho, irritante e barulhenta como uma amiga embriagada de cerveja barata, de não pensar como todas as outras cabeças e assim não ser como elas e não compreendê-las. Yuri conversava consigo mesma, abria a boca e não saía som algum, seus olhos eram quase um sorriso. Sentia preguiça de viver o momento, e se preguiça era estado ou sentimento não sabia, sabia que estava presa por mãos firmes a um inconformismo que não cabia no mundo. Um laço feito por um demônio ou um deus.
Enquanto vestia o uniforme do novo trabalho lamentava. Mas lamentava o quê exatamente? Sacudia a cabeça e decidia que tentaria – sorria em frente ao espelho – caminhar por uma vida cheia de coisas que nunca entenderia. O que via era uma quase mulher, uma linha que atravessava quase toda a testa, tocava o reflexo semi-morto; se não sabia viver então como viveria? Perguntar para alguém fugia do seu estado de normalidade. Conhecia pessoas mas não tinha ninguém. Quem era o deus e por que decidia como um louco que todas as coisas deveriam ser assim?
Quando era mais nova sonhava em conhecer lugares como a Índia, onde todo o sol pudesse alcançar. Crescera com braços compridos, tudo tornou-se borracha gasta, uma vida elástica, tinha preguiça de ser triste e também feliz embora não soubesse tocar a vida sem um dos dois extremos. Foi o que Yoona disse algumas vezes, a última na estação ferroviária, havia duas semanas. "Você não sabe viver se não for feliz ou triste". E sempre que Yoona dizia isso Yuri percebia que, na verdade, não existia mais a Índia e que o sol, então, era sempre azul. Yuri boiava como sobre a água, caminhava até o trabalho com os pés pesados, chutando pedras e os próprios sapatos. Trabalhava em um mercado, com as mãos secas, batia o dedo sobre o ponto três vezes porque ele nunca reconhecia suas digitais. Um sorriso pretensioso que ninguém vê. Odiava com todas as forças detergentes e abacaxis, doces de leite e absorventes. O dia era quase sempre como uma lenta tortura, a vida conseguia ser uma inverdade e todas as coisas que não entendia confrontavam-na dentro daquelas paredes. Como aprenderia a viver se tudo assustava?
Um brilho que todos os dias atravessava a boca do poço. Estrelas ou só a salvação?
Yoona era segurar algo com as duas mãos.
Yuri percebeu-se apaixonada assim que se formou e deixou-a para trás, cresceu, não podia vê-la como antes, Yoona ainda era uma menina com o mesmo uniforme que Yuri jogou no fundo do guarda-roupa, sujo de tinta, um ano antes. Pensava às vezes em como Yoona a enxergava, era sempre tão gentil, tão companheira, não se irritava, dava forças aos seus ombros segurando-os com as mãos magras. Olhar gentil que Yuri não achava nem bonito e nem feio, mas desejava e amava. Se não podia vê-la como antes restava apenas a saudade, o quase abandono que Yuri alimentou com um saudosismo apaixonado que ela nunca soube de onde surgira.
Sentada ao seu lado, na estação ferroviária, pensava em dizer tudo. Sempre e de repente. Se imaginava derramando o coração. Yoona, eu nunca tive certeza de certeza nenhuma (as certezas são sempre tão difíceis, você sabe, ninguém as conhece), mas eu sou tão miserável, eu encho minha cabeça com tantas coisas – pensava, ali, em colocar todas as palavras no papel e então entregá-las pois era metade confusão metade covardia – e quando me sinto feliz penso em você, quando minha cabeça é enfeitada por sua presença derretida, sorrio desde os dedos dos pés até as sobrancelhas e por isso tenho certeza que a amo. Mas nada nunca saía, YoonA arrumava as mangas do uniforme e ouvia Yuri balbuciar, suspirar, uma coisa nem feliz nem triste, com gosto de vida e de se perder, segurava novamente seus ombros com as mãos e sorria. – Alguma coisa boa vai te acontecer porque coisas boas sempre acontecem para as pessoas mais lindas. – Mas Yuri pensava, de repente, que o que faltava em sua vida não eram coisas boas, tinha nas mãos quase todas elas. O que faltava era um senso. Mas senso de quê? Os trilhos sacudiam e Yuri percebia que Yoona ainda estava ali, segurava sua mão em um agradecimento, percebia que em seu lugar estaria cansada, todos os dias eram as mesmas palavras e o mesmo aperto. Não era um pedido de socorro mas era tão desesperado quanto, dedos frios que envolviam sua palma. Yoona tinha senso. Mas senso de quê? E apertava mais forte sua mão e quase deixava escapar um eu te amo. Se perdesse Yoona, perderia mais o quê? Engolia as palavras, pensava ter uma melhor amiga. Não precisava de mais nada.
Yuri ganhava um abraço, braços que se enrolavam por todo seu corpo – se fosse correspondido o seu amor estranho? – e voltava para a casa, desejando, ainda, ser muito feliz ou então muito triste.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.