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História Pobres almas desafortunadas - Arco 1 - Parte 2


Escrita por: Jude_Melody

Capítulo 3 - Arco 1 - Parte 2


Ariel retornou no dia seguinte. Eu já estava sentado no meu pequeno salão, esperando com os braços cruzados. Abri um meu sorriso assim que aquela confusão de verde e vermelho adentrou o cômodo e me preparei para os cumprimentos de sempre.

— Minha pequena...

— Daren! — Ele exclamou, atirando-se em meu peito. — Deixe-me viver aqui, por favor!

Ergui o rosto, estupefato.

— Mas o que...

Ele se afastou de súbito.

— Eu não faço bagunça. Juro! Arrumo minha própria cama, preparo nossa comida. Só me deixe viver aqui. Por favor, por favor, por favor! — implorou, juntando as mãos.

— Ei, ei, ei! Ariel! — Levantei-me, fitando-o com uma surpresa genuína. — Para que tanto alarde?

— E-eu disse a meu pai ontem à noite que não gostava de sereias, só de músicas, mas ele não queria me ouvir. Então, eu disse que gostava de tritões, e ele ficou louco! Disse coisas horríveis para mim, horríveis! Foi uma lástima, Daren! Uma terrível e profunda lástima!

Ele se atirou no piso de pedra, chorando. Eu ainda tentava processar suas palavras, que eram muito mais incríveis do que as minhas mais vaidosas entradas triunfais. Agachei-me como pude e fiz carinho em seus cabelos.

— Pronto, pronto. Acalme-se. Eu vou te ajudar.

Busquei em meu estoque uma de minhas poções da felicidade. Era um líquido quase inofensivo, que deixava as pessoas alegres por algumas horas. Quando retornei ao salão, Ariel estava sentado em uma das pedras, fitando a própria cauda. Depositei o frasco na mesa à sua frente.

— Ariel? — chamei.

— O que eu faço, Daren? Não sei o que fazer.

Fiquei em silêncio. Não tinha a menor ideia do que lhe responder. O jovem acabara de ser rejeitado pelo pai. Talvez fosse minha chance de oferecer um contrato.

— Ariel, quantos anos você tem?

— Dezenove. — Ele esfregou o rosto. — Por quê?

Dezenove. Sua aparência era condizente com a idade. Um tritão franzino, mas belo. O peito branco subia e descia no compasso de sua respiração, mas eram os cabelos que conquistavam. Ruivos e macios, eles flutuavam ao redor do rosto decorado pelo verde que eram seus olhos.

— Você ainda é tão jovem... Não deveria sofrer uma dor como essa.

Ariel olhou para mim. Parecia perdido. Sorri para ele.

— Sabe... Quando eu era criança, minha mãe foi assassinada.

Ele levou as mãos aos lábios, horrorizado. Seus olhos sempre brilhantes preencheram-se de lamento.

— Quem faria uma coisa dessas?

Virei o rosto de lado, dando-lhe uma breve visão de meu brinco de concha.

— Um tritão mau.

Ariel balançou a cabeça, tristonho.

— Eu sinto muito...

— Mas a minha mãe me amava. Ela morreu em meus braços, mas me amava. — Eu o encarei. Meus olhos estavam turvos. — Eu só consigo imaginar a dor de não ser amado por seu pai.

Ele não me respondeu. Apenas lambeu os lábios e ficou quieto em sua tristeza. As almas do jardim respeitaram seu silêncio.

— Daren, o que é isso? — perguntou, indicando o frasco com a poção da felicidade.

— Isto? — Eu peguei o frasco e o apertei em minha mão. — Nada. Não é nada.

 

Na terceira vez em que retornou sozinho, Ariel estava feliz. Atravessou o jardim cantarolando e me cumprimentou com um imenso sorriso ao se sentar diante de mim.

— Seja bem-vindo, Ariel — disse com uma breve reverência.

— Obrigado, Daren. — Ele correspondeu com outra reverência.

— Vejo que parece contente hoje. Alguma boa notícia?

— Uma excelente notícia!

Ariel contou tudo nos mínimos detalhes. Disse-me que, nos últimos dias, estivera se aventurando pela superfície. Era perigoso, é claro, mas ele queria passar o máximo de tempo possível longe de casa. Com a ajuda de Lilly, com quem finalmente fizera as pazes, iniciou suas explorações. Juntos, eles descobriram um navio em alto-mar. Ariel ouviu a música que os humanos tocavam e se apaixonou por elas. Seguindo a embarcação, encontraram uma praia na qual homens e mulheres reuniam-se para cumprimentar os viajantes. Amanhecia quando o navio atracou, mas a música continuava.

— Eles não fazem distinção. Tanto homens quanto mulheres podem cantar à vontade. Isso não é incrível?

— Sim — respondi aos olhos que brilhavam. — Maravilhoso!

— Se eu ao menos pudesse me juntar a eles... — lamentou-se Ariel.

Essa era a minha deixa. Eu esfreguei o queixo, pensativo.

— Eles o matariam assim que o vissem. Humanos são criaturas hostis.

— Sim, meu pai me contou sobre eles. Disse que capturam sereias e fazem coisas horríveis com elas. — Ariel estremeceu. — Também disse que, quando eu era criança, minha mãe for capturada e morta por humanos.

Permaneci em silêncio, sentindo a dor de Ariel. Era a primeira vez que ele falava de sua mãe. Eu não imaginava que tivesse um passado tão semelhante ao meu.

— Daren, o senhor canta?

Quase engasguei com a mudança súbita de assunto. Pensei em me sair com algum comentário bem humorado, mas a seriedade brilhava nos olhos de Ariel.

— Eu não canto.

— Mas o senhor tem uma voz tão bonita!

— Não. — Balancei a cabeça. — Bonita é a sua voz, Ariel.

E era. Desde o primeiro momento, eu soube disso. Ariel tinha uma voz pura e cálida que combinava tanto com a canção mais alegre, quanto com a canção mais triste. Ele tinha o poder de conquistar quem quer que fosse com ela. As almas de meu jardim não enganavam: a música de Ariel tocava de uma forma profunda, mais poderosa do que qualquer feitiço que eu pudesse criar.

— A sua também é.

Eu me surpreendi. Ariel segurava minhas mãos com as suas. O contraste do lilás no rosa claro era curioso e agradável.

— Cante para mim.

Sorri para ele.

— Está bem, mas não me culpe se eu deixá-lo surdo.

Eu cantei. Cantei desastradamente. Até Ariel balançou a cabeça, rindo.

— Você tem uma bela voz, mas lhe falta a técnica. Eu já sei! Posso lhe ensinar a cantar!

— Ensinar-me? — Joguei a cabeça de lado, desafiando-o. — O que te faz pensar que pode me ensinar o que quer que seja?

Ariel deu uma cambalhota para trás e depois girou o corpo, todo serelepe. Os cabelos dançaram de forma incrível com seus movimentos.

— Ora, senhor Daren! Está falando com Ariel, o cantor mais divino de todo o reino de Tritão! Ensinar-lhe um pouco de música não pode ser tão difícil!

 

Lilly acompanhou as aulas de canto. Ela já não parecia tão reticente em relação a mim. Até conseguia tecer elogios quando eu acertava as notas. Ariel, porém, mostrou-se um professor severo. E sua timidez desapareceu por completo. Ele não hesitava em tocar meu rosto, erguendo meu queixo. Sorria sempre, como se ensinar-me a cantar fosse a tarefa mais gratificante dos mares.

— Está melhorando divinamente! — exclamava sempre que eu completava uma de suas lições.

— Está sendo muito gentil comigo, Ariel.

Eu poderia usar uma de minhas poções ou feitiços para cantar melhor, mas não o fazia. As aulas eram uma boa forma de conquistá-lo cada vez mais. Eu podia sentir, em todo o meu ser, o quanto Ariel ficava mais e mais próximo de mim. Era só uma questão de tempo até eu arrebatá-lo com meus tentáculos, prendendo-o para sempre em meu jardim de almas. Enquanto isso, divertia-me com as canções que ele inventava.

— Eu sabia! Eu sabia! — disse Ariel ao fim do segundo mês de ensaios. — Você é incrível, Daren! Está cantando muito bem!

— Mas é claro. — Eu tomei suas mãos nas minhas. Ariel enrubesceu. — Afinal, eu tenho uma linda musa que me inspira.

Ele ficou quietinho com aqueles grandes olhos verdes. Estava tão próximo de mim que eu quase podia sentir a carícia de seus cabelos. Lilly estragou tudo enfiando-se entre nós para empurrar Ariel pelo peito.

— Muito bem, muito bem. Já é tarde. Precisamos ir embora, Ariel. Hum, até logo, senhor bruxo do mar!

— Até logo — respondi, contendo minha raiva.

Ariel e Lilly nadaram juntos em direção à porta. Estava quase retornando a meu quarto, quando ouvi uma voz cálida dizer:

— Espere um pouco, Lilly. Eu esqueci minha bolsa.

Ariel adentrou o pequeno salão com toda a graciosidade de sua cauda verde e seus cabelos ruivos. Pegou a bolsa em que guardava os instrumentos utilizados em nossas aulas e se aproximou de mim com um meio sorriso.

— Amanhã não poderei vir. Meu pai me levará ao reino vizinho para que eu conheça a minha noiva. — Ele inspirou fundo. — Mas eu voltarei assim que puder para que possamos cantar juntos.

Cantar juntos. Era o passo final. Depois disso, eu teria a confiança plena daquele tritão que me olhava com tanto carinho.

— Não se esqueça de mim, está bem?

— Esquecer-me? — Eu toquei seu rosto, afastando uma mecha de cabelo de seus olhos. — Como eu poderia esquecer a minha pequena musa?

Ariel sorriu e, com um movimento rápido, deu um beijo em minha bochecha. Ele desapareceu antes mesmo que eu piscasse, batendo a cauda em uma velocidade impressionante. Quando minhas pálpebras se ergueram, eu já estava sozinho.

 

As almas não voltaram a se lamuriar nos dias que se seguiram. Não porque Ariel estivesse em meu covil; ele ainda não retornara de sua viagem. A voz que cantava e acalmava as pobres almas desafortunadas era a minha.

 

— Daren! — exclamou Ariel, adentrando o salão. — Daren?

— Te peguei! — disse, tocando seus ombros por trás.

— Ah! Daren! — Ele se virou para mim, levando a mão ao peito. — Não faça isso! Pregou-me um susto.

— Ora, minha pequena musa, era justamente essa a intenção. — Eu abri um sorriso. — Por que demorou tanto?

Ariel suspirou.

— É uma longa história.

Sentamo-nos de frente um para o outro. Lilly não viera desta vez.

— O nome dela é Cibelle. É uma sereia muito bonita e agradável. Ela foi bastante gentil e solícita comigo.

— Mas... — principiei, já sentindo o tom melancólico de sua fala.

— Eu... — Ariel balançou a cabeça. — Não tem como isso dar certo, Daren. Eu já gosto de outro.

Fitei-o com cautela. Aquela era uma revelação perigosa. Se Ariel estivesse apaixonado, havia o risco de se afastar de mim. Eu só podia rezar em silêncio para que ele não fosse correspondido. Talvez, assim, pudesse oferecer-lhe um de meus contratos e, finalmente, pôr as mãos em sua alma. Desde que ele fracassasse, é claro.

— É mesmo, Ariel? E ele gosta de você?

O jovem tritão pareceu desconfortável. Apenas deu de ombros.

— Não sei.

— Ora, e por que não pergunta? Pode se surpreender com a resposta.

Ele inclinou a cabeça para o lado, sorrindo.

— Talvez...

Eu esperei. Sabia que, em momentos como este, era só uma questão de tempo até Ariel voltar a falar. Não me enganei. Ele segurou minhas mãos por cima da mesa, sorriu para mim e disse:

— Cante comigo, Daren.

Sorri também.

— Será um prazer, minha pequena musa.

Nós cantamos juntos. Primeiro baixinho, depois cada vez mais alto. Era incrível. Era libertador. Como Ariel gostava de dizer, divino. Enquanto segurava as mãos dele e fitava aqueles olhos cheios de verde e de carinho, eu me sentia verdadeiramente aceito pela primeira vez em anos. Fiquei orgulhoso de mim. Não errei uma nota sequer.

 

As pobres almas desafortunadas não choravam mais. Algumas delas até pareciam cantar. Elas cantavam comigo.

 

Eu jamais poderia prever aquele movimento. Quando abri os olhos, Ariel estava bem diante de mim, os olhos marejados de lágrimas. Com o susto, tentei jogar o corpo para trás, e meus tentáculos se moveram para todos os lados, alguns deles atingindo Ariel, que se defendeu com os braços. Olhei a meu redor. Como imaginava, estava em meu quarto, em minha cama. E Ariel invadira o cômodo.

— Desculpe, Daren. É que hoje eu vim mais cedo, e não encontrei o senhor no salão. Eu pensei em esperar, mas...

Ainda afetado pelo sono, estendi o braço e toquei o rosto de Ariel.

— O que houve, minha pequena musa? Por que choras?

Ele fechou os olhos com força.

— Meu pai marcou o casamento para o dia do meu aniversário, que será daqui a um mês. Eu não sei o que faço, Daren. Eu não quero me casar!

Ariel abriu os olhos, e o verde me atingiu com uma força descomunal. Eu não soube o que responder.

— Ah, Ariel... — suspirei.

— Eu preciso fugir.

— Agora?

— Não. — Ele balançou a cabeça com violência. — Meu pai mandaria seus guardas atrás de mim e eu correria o risco de ser encontrado.

— Quando, então?

— Eu não sei. No dia do casamento, talvez.

— Para onde? — perguntei, com cada vez mais urgência.

Ariel apenas prensou os lábios, olhando manhoso para mim. Pelos mares...

Aqui? — arfei.

— Não! Não poderia nunca, jamais, pô-lo em perigo! — Ele segurou minha mão. Eu não lembrava que ela ainda tocava o rosto dele. — Na praia. Entre os humanos.

Eu me levantei da cama.

— O que é isso, Ariel?! Perdeste o senso?!

— É o melhor que posso fazer! — Ele gritou, lutando para conter as lágrimas. — Lilly já sabe tudo sobre você. Ela com certeza entregaria o jogo a meu pai e ele te puniria por um sequestro que não existiu! Mas, se eu me tornar humano e fugir no dia do casamento, ninguém nunca...

— Espere... Você quer que eu te transforme em humano?

Ele assentiu com vigor.

— Sim, você é o bruxo do mar. Por favor, faça isso por mim. Eu pago o preço que for!

Fitei-o, horrorizado. Ariel parecia triste, mas seus olhos transbordavam determinação.

— A sua voz.

— O quê?

— O preço tem de ser algo que tenha tanto valor quanto o seu pedido. Você quer a liberdade eterna, Ariel. — Fechei os olhos com força, antecipando o que viria em seguida. — Portanto, o preço é a sua voz.

— Mas... — Ele se encolheu, melancólico. — Mas eu quero ir para a superfície justamente para poder cantar. Não tem outro jeito?

Foi a minha vez de esfregar o rosto. Estava adquirindo os hábitos de Ariel.

— Tem um. Mas é perigoso.

Ele segurou minhas mãos.

— Aceito qualquer coisa. Eu só quero continuar com a minha voz.

Encarei-o de cima. Era mais alto do que ele.

— Eu o transformarei em humano na manhã do seu casamento. Deixe que seu pai o veja antes de vir para cá, mas não seja seguido por ninguém. Nós iremos até a praia. Eu lhe entregarei a poção... e você ganhará pernas.

Toda a atenção dele recaía sobre mim. Ariel absorvia palavra por palavra.

— E depois?

— Encontre um amor em três dias. Caso não consiga... — Virei o rosto na direção de meu jardim. Ariel acompanhou-me. — Sua alma será minha.

Havia horror em seus olhos arregalados. Horror e, acima de tudo, traição. Uma profunda e terrível traição. Com um suspiro, passei a mão por meus cabelos.

— É como funciona. Foi assim que minha mãe ensinou. Não sei fazer de outro jeito...

Ariel abaixou a cabeça, pálido. Eu tinha certeza de que ele ia desistir.

— Mas eu já amo alguém...

— Então... — Eu não toquei seu ombro. Não desta vez. — Faça com que ele se apaixone por você em três dias.



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